. Opinião e Artigos

“…uma história se conta, não se explica”

Para quem perguntou sobre os destinos de Karolina com K

Mafuá de Malungo é uma coluna assinada por Elton Becker no site Conquista de Fato

Jorge Amado também não sabia de tudo de Tieta

Sim, uma história se conta, não se explica. O muito que podemos é conjeturar, presumir, imaginar. E esta frase que me serve de título está como epígrafe lá em “Navegação de cabotagem: apontamentos para um livro de memórias que jamais escreverei”, livro de Jorge Amado, publicado em 1992, em que podemos ler os esgares, os estremecimentos, os lances das narrativas que nos são familiares e estão assentadas em alguns de seus livros, como “Mar Morto”; “Gabriela, cravo e canela”; “Dona Flor e seus dois maridos” e tantas outras publicações de enorme sucesso.

As histórias de Jorge Amado são quase que totalmente conhecidas e tanto são familiares que a mim fazem recordar a interessante provocação do professor, psicanalista e escritor francês Pierre Bayard que, em 2007, publicou: “Como falar dos livros que não lemos?“ (Editora Objetiva). Bayard, entre outros argumentos, sustenta que a não-leitura de um texto  não quer dizer nenhuma forma de contato com um livro. Eu mesmo (ainda) não li “Tereza Batista cansada de guerra”, mas sei que dona Filipa vendeu a sobrinha Tereza, órfã de pai e mãe, para o capitão Justiniano e também estou convencido de que, para saber de Tereza, não basta apenas ler o livro porque, Caymmi cantou, para saber de Tereza só mesmo Nosso Senhor.

Por outro lado, Pierre Bayard reforça que inúmeros professores (ele próprio, inclusive) e mais uma infinidade de críticos e editores não se eximem de comentar algo não lido. Ademais e antes que alguém julgue que isto soe como tranquilamente hipócrita, é sempre bom lembrar que é dificílimo, dificilíssimo agrupar os livros que a gente já leu e… se esqueceu. Sem falar naqueles livros que a gente comprou, não se lembra e… compra novamente. Tenho um amigo (não direi o nome aqui por discrição) que tem três edições idênticas de um livro de José Saramago!

Na época da faculdade, estudei com uma professora que possuía o hábito de comprar duas cópias de um mesmo volume quando se afeiçoava por um livro. Um deles ela guardava, enquanto usava o outro para dar aulas e o trazia todo rabiscado, repleto de símbolos, de uma tabela de abreviações ao final da edição e de uma marginália (anotações à margem dum livro) incompreensível. Tenho um outro amigo que, na época do vinil, costumava comprar dois discos iguais das bandas de Rock’n Roll que ele “curtia”. Botava um deles para tocar enquanto mantinha o segundo “no plástico” — como se dizia então.

Pensava que estes seriam um dos casos daquele primeiro amigo ávido leitor de Saramago. “Não é nada disso”, ele me revelou, “é esquecimento mesmo”. Dizem que o grande pensador Montaigne não se lembrava dos livros que havia lido e sequer recordava de textos que ele próprio compunha. Dizem também que Oscar Wilde ironizava que nunca leria um livro do qual teria de escrever a crítica, porque não gostaria de se deixar influenciar muito facilmente. Por conta de coisas assim, com seus infortúnios e alguma dose de graça, é que Pierre Bayard coloca a leitura ao lado do dinheiro e da sexualidade, instâncias da vida privada as quais, segundo ele, são as mais inseguras.

Portanto, para aquele autor, assim como a virgem pode falar de sexo, o paupérrimo pode falar de dinheiro, o não-leitor pode falar dos livros que nunca leu porque vai incorporando informações obtidas em diversas fontes, desde a mesa de bar, aquela reunião em família ou numa roda de amigos. Mas voltando a Jorge Amado, os livros dele estão por aí em emoções infindáveis, igualmente como seus personagens, os negros, os pobres, as prostitutas, os pescadores, o mar.

A força da literatura de Jorge está na própria carne e no próprio sangue que arrastam seus personagens para um extraordinário clima lírico e verossímil. Porém a literatura de Jorge Amado também tem um quê de mistério e de enigma. Se não, veja: quem leu, viu na TV, assistiu no cinema ou ouviu dizer, sabe que Antonieta Esteves, a Tieta do Agreste, era bem-disposta, direta, sem meias-palavras ou meios-termos em sua vida pública ou privada e, em assuntos de cama, Tieta era doutora de borla e capelo, Honoris-Causa, trazia tudo na ponta da língua e na ponta do gr… [leia o livro e saberá que palavra é essa]; enfim, para completar, nos deleites da cama Tieta era especialista no ipsilone. Imbatível.

Jorge Amado diz que, nos seus refinamentos, Tieta do Agreste praticava o ipsilone simples quando devorada pelo desejo, mas em desvario de paixão recorria ao ipsilone duplo. Uma desenvoltura. Um alvoroço. E olha que história maravilhosa: em maio de 1986, em Madri, na Espanha, durante uma sessão de autógrafos, uma elegante e graciosa senhora, maquiadíssima, lábios carnudos e vermelhos no acinte do batom, estende a Jorge um exemplar de Tieta para dedicatória, porém, antes, lhe diz que escrevera para a Bahia há vários anos querendo saber como era o ipsilone de Tieta. “¿Se acuerda de mí?”, ela pergunta.

Sim, a senhora havia escrito a ele contando todos os seus percalços amorosos, o marido pudibundo e limitado, que só sabia brincar de papai-e-mamãe. Um suplício. Uma lástima. Contudo uma vez viúva, voltou a estudar. Graduou-se e pós graduou-se, fez mestrado, fez doutorado. E tem classe, categoria, nível, igualzinha a Tieta. Todavia a gabaritada espanhola não sossegara até aquele tempo o coração atribulado, ai, ignora ainda totalmente o ipsilone, jamais o praticou, deseja praticá-lo o quanto antes. E ainda agora, ali, diante do autor, quer os detalhes, o requinte, a glória do leito de Tieta.

Jorge Amado, que já respondera àquela carta dizendo que nada sabia sobre o ipsilone, porque Tieta jamais lhe dera minudências, detalhes, a respeito, limita-se a perguntar: “¿No encontró quien lo enseñara a praticarlo?“. E a resposta é espantosa: “Todavia no, pero inventé el doblevê, es la sensación de España”. Ah… Em outro momento, Jorge assegura que do ipsilone ele sabe apenas que Tieta o praticava, afinal o romancista sabe uma porção do acontecido, não o todo.

E em meio a esse bolodório todo, recordo que, em uma de suas inúmeras aulas-espetáculo disponíveis no YouTube, outro grande romancista brasileiro, Ariano Suassuna, depois de rodear mil e um casos, justifica-se: “Vocês me perdoem, mas é que eu sou sertanejo; eu falo por arrodeios”. E eu que falo por arrodeios e muitos…? Eu que ainda sou anano, ananota, nos mistérios da criação, aproveito tudo isto para dizer uma coisa aos leitores, aos não-leitores, àqueles que apenas ouviram dizer, e vieram me perguntar sobre os destinos de Karolina com K (tema da nossa última coluna).

Como que me pertencessem o bem e o mal, o êxtase, o remorso e a mágoa, as pessoas e os lugares e o tempo, uns leitores me escreveram que Karolina não perseverou nas neganças, outros disseram que sim. Que os dois, Zébeja e Karolina, “lavaram a égua” na beira dum riacho desses. E houve quem dissesse que Karolina e Zébeja são muito desiguais um do outro; ela, trigueira, madura; ele um sonhador das ideias. Que Karolina deixou o sanfoneiro lazeirento e com água na boca, aguando a “celveja” quente e cheinha de “escuma” na banca de Samarica.

“Por que diabo Karolina não beijou o sanfoneiro Zébeja? Não está no conto. Por que foi, me diga!”. Isto me escreveu uma leitora no WhatsApp. “Karolina é gay, não é?”. Me perguntou certo leitor tal como tivesse tomado posse do próprio coração de Karolina — qualquer que este possa ser e o tivesse virado do avesso. Sinceramente, não sei. Não estive na festa e Karolina, embora seja de extrema franqueza, não me disse nada a respeito. Mas, sim, eu imagino o que sucedeu; imagino ora com certa crueldade, ora com certo romance, no maior teatro, no maior burburinho do mundo. Imagino tal como imagino o ipsilone de Tieta do Agreste e o doblevê da leitora espanhola.

A graça do romance não está no enredo, a poesia não está nos versos, por vezes ela está no coração. E é tamanha. A ponto de não caber nas palavras. Sobretudo porque imaginar é subir um tom e meio na realidade.

Enfim, são os mistérios da criação, absurdos do ofício da literatura, os imprevisíveis segredos dos personagens, e só. Pois uma história se conta, não se explica. E o que eu gostei verdadeiramente foi de contar, de dar essas sensações às pessoas. Gostei mais ainda de quem, mesmo sem ler, veio me dizer: “fiquei sabendo de Karolina” — grande mistério que não quero desvendar com o meu raciocínio que é gélido. Por hora, não quero nem tenho que indagar este mistério para não atraiçoar o mistério.

 

— Para o cantor e violonista João Luiz, o D’Unha, com quem compartilhei algumas deliciosas impressões dos leitores horas a fio, seguidas e divertidas. O meu amigo de olhar nostálgico e sereno; ele sim, um sonhador das ideias. “Vamos em frente amigo, vamos embora / Vamos tomar aquela talagada / Vamos cantar que a vida é só agora / E sem cantar amigo a vida é nada” (Chico Buarque, em “Sobre pressão”).

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