Uma história de quem enfrentou a paixão e seu desespero
Eu não quero falar em felicidade ou infelicidade, mas o dia em que mais chorei nesta vida também foi o dia em que eu comecei a prestar mais atenção em um colega de trabalho. A princípio, tinha asco dele. E não é assim que começam os melhores enredos de amor? Em pouco tempo, nos tornamos cúmplices e me interessei pela história dele. Era divorciado, a mulher os abandonara, a ele e ao filho. Eu, claro, já criara o enredo sonhado: duas almas solitárias se preparariam para a magia de amar.
Logo, sem muita tardança, não havia assuntos proibidos para nós. Eu gostava mais de estar com Ele e falar as coisas mais chatas da vida do que estar sozinha ou com outra pessoa falando sobre as coisas mais divertidas e interessantes. É verdade que as coisas mais chatas da vida continuavam a ser chatas, mas com Ele tudo era divertido. Eu era uma mulher nova, com percepções novas, perspectivas novas e mais vivas, e com uma solenidade quase que religiosa.
Não importava onde eu estivesse ou o que estivesse fazendo. O que importava era estar com Ele, no quanto eu ficava zonza, estonteada de tão feliz e feliz de tão zonza, nas minhas mãos o maior bem entre os bens terrenos. Mas eu era precipitada. Alguém já disse que o tempo de querer bem é o mais desgracioso e infalível veneno, supera quaisquer outras bebidas ou poções de café, álcool, ácido ou estricnina, e vai fomentando desejos por maiores, maiores e maiores doses.
Envenenada, eu precisava fazer alguma coisa. Carta de amor? Não, já tinha passado sem dar por isso e já era o tempo em que escrevia cartas de amor. E-mail? Também não, poderia cair na caixa de spam ou virar lixo eletrônico, ademais quase ninguém usava mais. Mensagem no celular? Sutil, porém vazia. Finalmente, me decidia. Tomei o bloquinho autoadesivo na minha frente e comecei a escrever.
Papai dizia “um é pouco, dois é bom e três nunca é demais quando a exageração é de Amor, que o exagero de Amor é mais belo que a gratidão”. Então, escrevi com toques de desespero e de espanto. Assinei em um cartãozinho, colei no teclado d’Ele e saí porta à fora, embargada, sem rumo, com pressa de sair e com milhares de pedaços de coisas me passando na cabeça.
Um ou dois dias se passaram e recebi um cartão-resposta. “O amor é feito de muitos sentimentos diferentes e eu gosto muito de você, mas não posso. Não podemos. Você não suportaria”. Assinado: D.N.V.U. É claro, Ele não me amava. Dei para ter raiva dele novamente, não podia vê-lo, que me arrepiava de nojo. Pois o amor pode viver de recordações, mas o ódio só requer o presente.
Logo, eu quis virar a página, desapaixonar e encarnar Mae West, em “Santa Eu Não Sou”. Quando sou boa, sou ótima. Quando sou má, sou melhor ainda. Também me vi como Lauren Bacall, em “Como Agarrar Um Milionário”, no momento em que ela diz que uma mulher escolhe melhor um cavalo de raça que um namorado, ou um marido. Tracei meu plano, fiquei com o cavalo e escolhi ser má. E funcionou…
Quer dizer, durou um tempo até aquela ligação d’Ele num sábado à tarde.
“Podemos nos falar?”, perguntou. “Venha à minha casa”, eu respondi, já passando o endereço. Ele chegou quando disse que chegaria, pontualíssimo. Eu já estremeci com isto. “Água, café ou chá”, ofereci. Ele se decidiu pelo café e, na cozinha, enquanto preparava, conversamos nervosos sobre coisas desconexas, assuntos tão esparsos quanto variados, o dia frio, a neblina persistente, o feriado… Sentamo-nos no sofá da sala e ele, polido, com um leve tremor nas mãos. No fundo do peito, meu coração fazia um ruído confuso.
Ele começou. Disse que tinha algo muito importante e delicado para me revelar, que seria impossível escrever. Ele completa que não gostaria de ter escrito o que escreveu. Eu acompanhava tudo e, namorando-o com olhadelas furtivas, eu observava seu lindo cabelo preto, seu rosto de nazareno, seu corpo deliciosamente perfumado, seu porte, como uma palmeira.
A esta hora, eu já ajeitara o vestido não sei quantas vezes, mudara de posição no sofá de quando em quando, e nem sabia o que fazia mais das mãos ou das pernas. Vez a vez, esfregava as mãos para ter coragem, porque aquela parte de meu corpo me surpreendia com sua vida quase própria. Suave calor me penetrava os nervos, me dominava as carnes. Amavelmente, interrompi sua fala. Acariciei seu rosto e Ele, falso, correspondeu.
Nos beijamos, tórridos, ofegantes, sem biocos de honra. Ele me beijou as orelhas e atrás das orelhas e uma respiração ofegante ergueu sobre o meu peito os colares de conta. Ele tocou os meus cabelos. “No cabelo não. Só com muita intimidade“, dissimulei mas estremeci, não resisti. Estava demais saidinha. Queria o alcance daquela flauta doce, em que eu me envolveria em macio cipó. Meti a mão lá. Lá na calça d’Ele meu desespero.
A trilha sonora aqui é de Maysa: meu mundo caiu. Ódio doente! Ódio são! Ódio bom! Ódio ruim! Só de lembrar agora tenho ódio dele. Não, não tenho ódio, tenho pena. Naquela hora tive vontade de dar socos. “Mas você tem um filho”, gritei. “Como é isso?”. E Ele me desafiou: “Há coisas que provocam a sede do mistério e você é uma mulher inteligente, então deduza”. Ainda em desatino, pedi que fosse embora aos berros. Abruptamente fechei a porta e a soquei violentamente.
Depois, lembrei: estou inundada e preciso me trocar. Precisava de um banho, na verdade. Precisava sair porque não poderia ficar em casa. Angústia terrível, assombrosa dor horrível. Precisava de uma cerveja. Precisava conversar. Liguei para minha amiga Anamartha, mas ela não atendeu. Saí. Entrei no primeiro bar aberto e entrei desassombrada — eu que pensava que não houvesse malassombro maior do que eu.
O garçom me trouxe a cerveja, que bebi toda de uma vez, com delícia e volúpia, toda a delícia e volúpia que eu quisera daquele homem. Tomei o celular e escrevi para Anamartha: “Acabou. O gigante nada mais é que a sombra de um nanico! Preciso lhe falar”. Anamartha ligou algum tempo depois, eu contei por cima.
“Só posso dizer que o meu dente de alho é maior do que o que Ele tem, seja lá o que for”. Anamartha não acredita. Nem eu acredito. “E você fez o quê?”, ansiosa ela quis saber. Falei que quis socar a cara dele e depois tive pena, sei lá. Anamartha riu, eu ri e desligamos. Se passaram alguns minutos e Anamartha me enviou o desenho de um pinto enorme acompanhado da frase: “Dedicado a você, que começou a noite como Julieta e quase acabou como Lady Macbeth”.
Eu ri novamente, deixei o celular de lado e pensei alto. Pensei não em Lady Macbeth, contudo em Macabéa e seu fundo enjoo. Foi quando as lágrimas vieram, irrefreáveis. Eu, malas-artes, também vivi quase tudo da paixão e o seu desespero. E agora só queria ter o que eu tivesse sido e não fui. Febre, hemoptise, dispneia, suores soturnos, mais a saudade do que poderia ter sido e não foi. Luta em que não lutei, perda em que não perdi, saudade de algo que poderia ter vingado, porém não vingou. Não despertem nem incomodem o amor de seu sono porque ele é um inferno, está escrito no Cântico dos Cânticos. Mas eu adoro arder em agonia.
Mesmo que seja um amor mal-azado e ainda quando naquela hora atrás tenha descoberto que o homem que eu amava seja nulo, pois nascera com agenesia gonadal. Um homem lindo e que acaso a sina o fez infeliz sem pênis e sem testículos. Contudo ele foi durante um tempo uma estrela luzindo em minha vida vazia. A hora da estrela deu em uma esperança menos triste ao fim do meu dia. Ainda hoje sonho que é estrela da vida inteira. Embora seja estrela tão alta, estrela tão fria.
Quando, um dia, eu for velhinha, hei de encontrar-te, estrela, no caminho?
Se tudo neste mundo começou com um sim, por que não?
— Para a historiadora Ana Cláudia Rocha Tomagnini Igurrola e para a filósofa Ariele Chagas Cruz. Estrelas, para mim. Estrelas. Não sei se de Macondo ou de Pasárgada. Estrelas Vésper do pastor errante.