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Para quem serviria uma Guarda Municipal? Parte 2: Comentários dos comentários.

Por Luiz Henrique Machado de Paula

  “(…) no compasso da cultura reinante, a política foi substituindo cada vez mais ideias e ideais, debate intelectual e programas, por mera publicidade e aparências”.[i]

 

Não sei como pode ser maldade alguém externar uma opinião. É muito fácil não pensar e aceitar o que lhe dizem ser uma solução fácil para um problema complexo. Os fascistas é que gostam de impor suas opiniões. Os fascistas é que não gostam de ouvir opiniões que não se coadunem com as suas. No Brasil “tomar consciência da realidade é coisa subversiva”.[ii]

Seria covardia concordar com a opinião da maioria se acredito que ela não está certa. Maldade é defender a criação da Guarda Municipal em detrimento de outros serviços públicos, apenas para extrair alguma vantagem pessoal, talvez um cargo, um emprego ou um voto.

Disseram que era parcial. Sim, se não concordo com a implantação da guarda municipal, sou parcial, tenho um lado. Mas, se a parcialidade se refere a questões político-partidárias, não, não fui parcial. Inicio o texto avisando que qualquer que fosse o eleito a discussão sobre a implantação da Guarda Municipal surgiria, já que todos os candidatos defendiam a sua criação em seus planos de governo. Também, devemos nos lembrar que a discussão do assunto foi proposta na Câmara de Vereadores, um colegiado com representantes de diversos partidos políticos, com a participação de convidados e de público em geral e, me parece, que todos os vereadores que lá estavam concordam com a implantação da guarda, já que nenhum se manifestou contrário (posso estar enganado), ou seja, minha opinião não está conectada a nenhum partido político ali representado.

O texto é de opinião e não de informação, por isso, me parece, que o comentarista que afirmou ser o mesmo parcial, tomou dois conceitos diversos como sendo um só. Confunde os conceitos de parcialidade com o de objetividade. A parcialidade diz respeito aos critérios do agir, do fazer. A objetividade está no campo do conhecimento, é uma relação que se estabelece entre o sujeito observador e o objeto observável, é uma característica da observação, do conhecimento, do pensamento.[iii]

Ou seja, é parcial, mas é, ao mesmo tempo, objetivo (não fundamentado em questões subjetivas, de interesse pessoal). O texto expõe uma opinião o que o torna parcial, mas a opinião se expressa de forma objetiva, vinculada ao conhecimento decorrente da observação que faz o autor sobre a questão em debate.

Sou a favor da municipalização da atividade de polícia administrativa de prevenção criminal, mas para isso seria necessária uma modificação constitucional, autorizando a criação da “polícia municipal”. Enquanto esta não ocorre, não é possível “dar jeitinho”, atribuindo às Guardas uma função que a Constituição não deu.

A Lei 13022/14 não ampliou a função das Guardas Municipais. A lei não pode ampliar o texto constitucional atribuindo às guardas municipais funções que foram destinadas para as agências de prevenção e repressão criminal (art. 144, §§ 1º ao 5º da CR/88).

Não se pode fazer a leitura da Lei 13022/14 de maneira isolada, ela não é a pedra fundamental, a ilha da fantasia, não existe por si só, ela não é o oráculo que emana a sabedoria e a autoridade. A Constituição da República é a fonte, a base para a elaboração das leis e esta restringe as funções das Guardas Municipais à proteção dos bens, serviços e instalações municipais. Desta determinação (restritiva) constitucional é que partimos para a leitura do texto da lei.

“Viragens linguísticas”, textos truncados, de conteúdo aberto e indeterminado são técnicas que muitos legisladores (deputados, senadores e vereadores) utilizam para aprovar leis que podem lhes render votos, pouco preocupando se, depois, as mesmas terão sua validade discutida, pois o problema passa a ser do Poder Judiciário e a conta quem paga é o povo.

A Lei 13022/14 é repleta de “truques” que levam os incautos à conclusão de que as funções da Guarda Municipal são outras além das previstas na Constituição. Evidencia-se, v.g., o jogo de palavras entre o art. 4º caput e o art. 5º, caput e incisos. Num diz que “é competência geral das guardas municipais a proteção de bens, serviços, logradouros públicos municipais e instalações do Município” (função atribuída pela Constituição). No outro diz que “são competências específicas das guardas municipais” estabelecendo um rol de “funções”, o que faz com que o leitor menos atento acredite que a Constituição se encarregou apenas da atribuição geral e a lei da atribuição específica, maior que a geral (isso seria um paradoxo, pois o específico é uma parte do geral).

A lei diz que as Guardas Municipais não podem realizar atividade atribuída às agências Federais e Estaduais, é o que diz o caput do art. 5º da Lei 13022/14, in verbis: Art. 5º São competências específicas das guardas municipais, respeitadas as competências dos órgãos federais e estaduais: (destaque meu). Ou seja, as guardas municipais não podem realizar atividades que pertencem à Polícia Civil (Federal ou Estadual), da Polícia Rodoviária Federal e nem as atribuídas às Polícias Militares. O texto permite que alguns acredite que as guardas podem fazer mais do que o permitido pela constituição, desde que não ultrapassem a “competência” das agências policiais.

Outros “truques” da Lei 13022/14:

  1. No art. 3º diz que um dos “princípios” de atuação da guarda municipal é o patrulhamento preventivo, o que faz parecer que as Guardas estão incumbidas da mesma função da Polícia Militar, patrulhar as ruas, abordar pessoas, realizar buscas pessoais, realizar blitzes aleatórias com finalidade de encontrar armas, drogas etc. As guardas municipais podem realizar patrulhamento preventivo, lógico, mas destinado EXCLUSIVAMENTE à proteção de bens, serviços e instalações municipais, nada além disso.
  2. No art. 5º, inciso XIV a lei diz que o guarda municipal deve encaminhar ao delegado de polícia, diante de flagrante delito, o autor da infração (…), parecendo que a função da guarda, novamente, seria idêntica à da Polícia Militar. Ocorre que qualquer pessoa pode capturar alguém em situação que acredite ser de flagrante delito e toda captura de alguém nesta situação deverá ser apresentada ao Delegado de Polícia, profissional encarregado pela CR/88 de avaliar o fato e sua conformação jurídica, determinando se existe ou não autorização para a lavratura do Auto de Prisão em Flagrante. Ou seja, a lei não atribuiu uma função específica, apenas ressaltou o que a CR/88 (art. 144, §§ 1º e 4º) e o Código de Processo Penal (art. 301) prescrevem para todos.

Existem muitos outros “truques” na Lei e não cabe aqui ficar discutindo e detalhando todos. O que importa dizer, novamente, é que a Constituição está acima da lei e o fato de ser tolerada, em vários municípios, a atuação inconstitucional das guardas municipais, não significa dizer que esta é legítima e autorizada. O costume não revoga a lei, muito menos a Constituição.

A Lei 13022/14 é objeto de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI-5156 de relatoria do Ministro Gilmar Mendes), com parecer do Procurador Geral da República pela inconstitucionalidade da mesma ou pela interpretação conforme a Constituição do art. 5º, incisos VI, XIII e XVII[iv].

Toda ação deve ser comandada pela prudência[v], cujo significado está ligado ao de sabedoria[vi]. Por isso os romanos chamavam de jurisprudência a doutrina estabelecida pelos jurisconsultos eminentes, chamados de prudentes[vii].

Antes da decisão final do STF, seria imprudência criar e implantar uma guarda municipal, evitando o que ocorreu em Araçatuba/SP e que poderá ocorrer na capital paulista.

Numa Ação Civil Pública (1010780-61.2015.8.26.0032) interposta pelo representante do Ministério Público do Estado de São Paulo, oficiante na Comarca de Araçatuba, o Tribunal de Justiça, por meio do Juízo daquela comarca, julgou procedente o pedido do Ministério Público, nos termos abaixo:

“Do exposto, JULGO PROCEDENTE a presente ação movida por MINISTERIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO em face de MUNICÍPIO DE ARAÇATUBA e o faço para declarar incidentalmente a inconstitucionalidade dos incisos XIII e XVII do artigo 5º da Lei 13.022/2014, por violação direta aos parágrafos 4º, 5º, 6º e 8º, do artigo 144 da Constituição Federal e, por consequência, determinar à ré, por meio de sua Guarda Municipal, que se abstenha de efetuar atividades próprias de polícia, tais como investigações, diligências para apuração de crimes, abordagens e revistas em pessoas, limitando-se na hipótese de notícia de ocorrência de crime, que comunique às autoridades competentes, salvo situação de flagrante delito, limitada sua atuação nos termos de sua competência constitucional e legal, no que não contrariar esta decisão, tudo sob pena de multa a ser arbitrada sobrevindo descumprimento. Julgo extinto o feito com resolução de mérito, com base no artigo 487, I, do CPC. Sem custas, despesas e honorários”. Araçatuba, 08 de julho de 2016[viii]. (negrito meu)

A questão será discutida na Capital paulista, onde foi instaurado, no dia 23/05/2017, um Inquérito Civil (investigação preliminar para a Ação Civil Pública) numa parceria do Ministério Público e Defensoria Pública, destinado a apurar os atos ilegais praticados pela Guarda Civil Metropolitana (GCM) no dia 21/05/2017, na região chamada de cracolândia, quando a GCM realizou abordagens, buscas pessoais e apreensão dos pertences das pessoas que ali viviam em situação de rua[ix].   “Isso não é trabalho da GCM. Vamos baixar um inquérito civil público junto à Defensoria Pública para colher provas de desvio de função e verificar se essa ordem partiu do Comando da Guarda, que será responsabilizado”, palavras do Promotor de Justiça Arthur Pinto Filho[x].

Quanto aos recursos financeiros, não existem verbas federais para a manutenção da Guarda Municipal, o que existe é a possibilidade de, por meio de projeto (de implantação, treinamento, aquisição de equipamentos) obter-se (se existir o dinheiro e se o projeto for aprovado) uma parte do valor necessário para aquele fim específico. A manutenção do serviço deve correr por conta do Município e para isso, a prefeitura terá que adaptar seu orçamento, ou seja, vai tirar o dinheiro de outras secretarias, de outros serviços para alocar na guarda.

É claro que não é possível quantificar quanto vale uma vida salva por um guarda municipal, mas este argumento é ingênuo, esse é um argumento que visa esconder a realidade destacando um fato positivo e deixando de lado o quadro geral negativo, como diria BIONDI[xi]: “é vender o bife pelo boi”. A vida salva é facilmente imputada ao salvador, o que não se consegue mostrar facilmente é que recursos mal aplicados são os responsáveis por pessoas que morrem em filas de hospitais, ou por falta de algum exame médico, ou em decorrência de acidente de trânsito por insuficiência das equipes de resgate, ou por se ter escolas que não conseguem atrair e manter os alunos (falta de bibliotecas, videotecas, psicólogos, assistentes sociais), permitindo com que possam ser mais facilmente cooptados para o crime.

Ter uma opinião contrária não é ser inimigo. Não é querer ser o dono da verdade. É, talvez, apenas uma forma de pensar que não foi pensada pelo outro. Ou, talvez, um nada, já que “Julgamo-nos uns sábios e não passamos de pobres animais irracionais lançados no turbilhão de uma caldeira fervente, sílfides de araque dançando sem perceber a dança, macabra, efêmera mas eterna porque sempre igual, a mesma sempre, com óculos ou sem óculos, tudo uma palhaçada ou uma tragédia só”.[xii]

Vitória da Conquista, 29 de maio de 2017.

[i] VARGAS LHOSA. Mario. A civilização do espetáculo: uma radiografia do nosso tempo e da nossa cultura. Editora Objetiva, 1ª edição, 11ª reimpressão, 2015, Rio de Janeiro, p.118.

[ii] JARDIM. Afrânio Silva. Direito Processual Penal: Estudos e Pareceres. Editora Juspodium, 14ª edição, 2016, Salvador, p. 8.

[iii] ABRAMO. Perseu. Padrões de manipulação na grande imprensa. Editora Fundação Perseu Abramo, 1ª edição, 2003, São Paulo.

[iv]  http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=7811597&ad=s

[v] ASCENÇÃO. José de Oliveira. O direito: introdução e teoria geral. Editora Almedina, 13ª edição, 2005, Coimbra, PP. 14-15.

[vi] FARIA. Ernesto. Dicionário escolar latino português. Editora FAE, 6ª edição, 1985, Rio de Janeiro, p. 449.

[vii] ACQUAVIVA. Marcus Cláudio. Dicionário jurídico brasileiro. Editora Jurídica Brasileira, 8ª edição, 1995, São Paulo, p. 859.

[viii] http://s.conjur.com.br/dl/juiz-proibe-guarda-municipal-abordar.pdf

[ix] https://.cartacapital.com.br/sociedade/em-sao-paulo-a-gmc-assume-cada-vez-mais-o-papel-de-pm

[x] https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2017/05/22/mp-vai-investigar-gcms-que-fizeram-vistoria-na-cracolandia.htm

[xi] ABRAMO. Perseu. Padrões de manipulação na grande imprensa. Editora Fundação Perseu Abramo, 1ª edição, 2003, São Paulo, p. 61.

[xii] CARVALHO. Campos de in Cartas de viagem e outras crônicas. Editora José Olympio, 1ª edição, 2006, Rio de Janeiro, p. 68.

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