Por Carlos Nascimento[1]
Em artigo publicado em 2010, a jornalista Renata Cristina da Silva[2] escreve que, segundo a Doutrina dos Avatares, “o deus hindu Vishnu possui dez encarnações ou avatares, entre os quais Krishna e Sidarta Gautama, o Buda, são seus representantes no mundo físico”. Também, conforme seus apontamentos, é possível se ter semelhante entendimento da figura de Jesus Cristo, que seria a encarnação, ou o avatar, de Deus na Terra.
Em ambas as descrições, a divindade se encarna em homem para vivenciar a mortalidade e trazer orientação espiritual ao plano terreno, sendo que, esta assunção do corpo – da fraca carne – incorre numa necessária perda de poderes. Signo da humanização que aponta a equidade como caminho necessário a um mundo melhor.
No sentido oposto, como segue a explicar a jornalista, o termo Avatar passou a ser utilizado para descrever os personagens criados pelos jogadores de videogames em suas interações virtuais e, em consequência disso, também para nomear as formas com as quais os usuários da internet passaram a se fazer representar no ciberespaço. Novos caminhos para construções das personas[3] de Carl Jung.
Contudo, inversamente ao conceito hinduísta, na internet, o ser humano se desencarna para migrar ao universo de bits, nele assumindo poderes improváveis, ou impossíveis, na sua restrita condição biológica.
Neste segundo caso, vivenciam-se experiências que extrapolam as mais ficcionais visões retrofuturismas[4]. Mesmo não tendo alcançado a era dos carros voadores ou do teletransporte, como que tivesse operado um desvio no curso da história, a chegada da internet tornou possível fazer muito mais do que estas almejadas evoluções tecnológicas se propunham.
Por exemplo, ao instalar o aplicativo da ISS (International Space Station) no smartphone, pode-se olhar para a Terra a partir do espaço, em tempo real e com imagens de alta definição. Com outros muitos recursos online, caminha-se pelos corredores de famosos museus ou pelas ruas de Bangladesh. Ressignificações do corpo, do tempo e do espaço. Ressignificações do possível.
“Você foi chamado, vai ser transmutado em energia
Seu segundo estágio de humanóide hoje se inicia
Fique calmo, vamos começar a transmissão
Meu sistema vai mudar
Sua dimensão
Seu corpo vai se transformar
Num raio, vai se transportar
No espaço, vai se recompor(…)”
Futurível. Gilberto Gil (1969)
Sobre estas novas capacidades, cabe entender um pouco do que pensa a antropóloga estadunidense Amber Case[5]. Conforme propõe, ao agregarmos estas tecnologias a nossas vivências contemporâneas, nos convertemos todos em ciborgues[6]: seres híbridos, formados pela integração homem-máquina que permite a transposição, física e intelectual, de nossas limitações orgânicas.
Não obstante, diferentemente dos meio-robôs dos filmes de ficção, as máquinas às quais estamos a nos fundir apresentam outros formatos, bem mais simples, compactos e simpáticos. Estão em nossos bolsos, vinculadas ao mundo através de acessos instantâneos e prontas a nos lançar a universos (in)críveis, todos passiveis de “concretude”.
Tudo isso nos é confortável, nos atrai, nos excita e nos seduz. Mas, como nada na vida é de graça, o acesso a todas estas faculdades incorre em permutas. Com poucos clicks autorizamos estes fantásticos ciber auxiliares a tomar ciência de nossa intimidade: por onde andamos; o que lemos; compramos; assistimos; comemos ou com quem nos relacionamos. Em troca disso ganhamos a pílula mágica do poder ilimitado. O gozo de “tudo” na ponta dos dedos.
Todavia, estas trocas, que tornam tão “fortes” os seres deste futuro-presente, necessitam de um olhar um pouco mais atento.
A expansão da cibercultura, à qual nos vinculamos de forma visceral, está diretamente associada às individualizações e ao consumismo que marcam a pós-modernidade e alicerçam o neoliberismo. Consumismo que, através da internet, se manifesta não tão somente pela compra de bens e serviços, mas também pela compra de ideias e de pessoas (ou avatares), negociadas em likes e compartilhamentos. Sensações de hiperpotência e independência que corroboram para a atomização do indivíduo, convertido em “ser produto” desta dissociedade pujante. Uma solidão “coletiva”, que promove o dispersar de ideias, disfarçado na falsa percepção de pertencimento a tribos que concretamente não se encontram.
Estes fatores contribuem para o fortalecimento de conceitos como o de “você, empresário de si mesmo”, incentivo tosco à precarização das relações de trabalho e à corrida desleal no dromo meritocrático.
Neste contexto, o nominado sequestro da subjetividade[7] carece de uma análise mais profunda, que extrapole o campo direto das relações trabalhistas, posto que, a contratação de serviços através da internet converte também clientes em empregados informais. Estes, encantados pela praticidade do canal, acabam por contribuir para a redução dos custos das contratadas, mas também para o desempregar de pessoas que executariam partes daquelas atividades. Processo de difícil reversão, uma vez que instituições que não se enquadrem neste ciclo fatalmente sucumbem ao mercado.
Este jogador, herói de seu próprio mundo, também deve-se continuamente à cobrança do sucesso que estampa nas imagens postadas nas redes. Sucesso idealizado e cintilante nos sorrisos daqueles a quem (per)segue: outros deuses-heróis que sobrevivem no imaginário cibernético de uma sociedade perdida.
Logo, ao contrário do deus que se humilha para “ser humano”, o indivíduo que se eleva ao ciberespaço parece se descolar de sua básica condição. Seu altivo isolamento dissolve ligamentos que lhe serviam de equilíbrio e apoio em meio a seus diferentes, o colocando no plano “divino” do egoísmo e da cegueira social. Avatar preso nas engrenagens que fazem Chaplin[8], operário palhaço, girar em eternidade. Locatário de seu eu, escravo do engenho que tritura e orienta seu épico destino.
[1] Texto elaborado a partir do Capítulo II da Dissertação de Mestrado O ciberespaço enquanto palco de confissões e contradições: uma problematização a partir da notícia de um caso de estupro coletivo de uma adolescente brasileira. Disponível em https://bdigital.ufp.pt/handle/10284/7672. Acessado em 03/09/2020.
[2] DA SILVA, Renata Cristina. Apropriações do termo avatar pela Cibercultura: do contexto religioso aos jogos eletrônicos. Contemporânea (Título não-corrente), v. 8, n. 2, p. 120-131, 2010.
[3] “Persona significa máscara. A palavra vem do teatro grego, onde cada personagem utilizava uma máscara para construir seu personagem”. Disponível em https://www.psicologiamsn.com/2011/01/persona-jung.html. Acessado em: 03/09/2020.
[4] “[…]o futuro visto do passado […] futuro imaginado que existia na mente de escritores, artistas e cineastas no período que antecedeu a década de 1960”. Disponível em https://www.dm.jor.br/cultura/2017/02/retrofuturismo/. Acessado em: 03/09/2020.
[5] CASE, Amber. We are all cyborgs now. In: TED Conferences., http://www. ted. com. 2010.
[6] Termo inventado pelos cientistas Manfred Clynes e Nathan Kline, em 1960, durante a corrida espacial. Defendiam que seria mais lógico adaptar o ser humano ao ambiente hostil do espaço, através de incorporação de tecnologias, do que adaptar o espaço para a vida humana.
[7] “O sequestro da subjetividade por parte da organização consiste no fato desta apropriar-se, planejadamente, através de programas na área de gestão de pessoas, e de forma sub-reptícia, furtiva, às ocultas, da concepção de realidade que integra o domínio das atividades psíquicas, emocionais e afetivas dos sujeitos individuais ou coletivos que a compõem (trabalhadores, empregados)”. FARIA, JH de; MENEGHETTI, Francis Kanashiro. O sequestro da subjetividade. Análise crítica das teorias e práticas organizacionais, v. 1, p. 50, 2007.
[8] CHAPLIN, Charles Productions. Tempos Modernos. Estados Unidos: 1936. (87 min.), P&B.
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