Postado inicialmente no blogdopaulonunes.com
Pensando em Machado de Assis e, sobretudo, no seu Quincas Borba, posso afiançar que quem ouvisse tal história, aceitaria tudo por verdade, tal é a nota sincera, a meiguice dos termos e a verossimilhança dos pormenores. Basta-nos saber que a história é boa, e, então, já será, na verdade muito mais que isso. Aos poucos, fui descobrindo que Ruy Hermann Araújo Medeiros era o mesmo tio Ruy, de Francis, Fabrício, Ricardo e Wagner Cristiano, ou ainda o pai de Mário — todos meus companheiros.
Aliás, Francis Augusto foi o Medeiros que me fez sair de Macondo, o povoado ficcional criado por Gabriel García Márquez e no qual gerações e gerações coexistiram num mesmo instante e num mesmo centenário de solidões. Inicialmente, foi por estas amizades e, posteriormente, por meu ingresso no curso de História da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), que fui descobrindo lentamente a estatura daquele homem que eu viria muitas vezes conversando com Kátia Cairo sobre livros, no antigo Cairo Center, onde eu começa a me tornar habitué, tal como ele era.
E foi com muitíssima surpresa e timidez que, eu tantas vezes acabrunhado na angústia das pequenas coisas ridículas e macondense nato, mal lhe respondi quando o encontrei naquela livraria manuseando uma reedição de “O Coronel e o Lobisomem…”, tão logo Ruy me perguntou: “Conhece o José Cândido de Carvalho?”. Eu mal sabia (e menos ainda assistira) a adaptação do texto feita por Guel Arraes, Jorge Furtado e João Falcão para a TV Globo, em 1994, com Marco Nanini, no papel do coronel, Patrícia Pillar, como Esmeraldina, e Paulo Betti, como Pernambuco Nogueira.
Envergonhado e mais receado de perder o apreço na primeira investida do mestre, disse “Sim, claro”! Porém, para minha maior insegurança, Ruy começou a citar de cor todo o início do livro: “A bem dizer sou Ponciano de Azeredo Furtado, coronel de patente, do que tenho honra e faço alarde. Herdei do meu avô Simeão terras de muitas medidas, gado do mais gordo, pasto do mais fino. Leio no corrente da vista e até uns latins arranhei em tempos verdes da infância, com uns padres-mestres a dez tostões por mês” (José Cândido de Carvalho, “O coronel e o lobisomem…”, p. 08).
E o fez com direito ”à remate do nome, sobrenome e pronome” do livro. Porque assim é o título: “O coronel e o lobisomem. Deixados do Oficial Superior da Guarda Nacional, Ponciano de Azeredo Furtado, natural da Praça de São Salvador de Campos dos Goytacazes”. E, claro, tenho certeza, modéstia de lado, Ruy não fez por glória! Porque, em se tratando de “sujeito lavado de vaidade, mimoso no trato, de palavra educada” ali demonstrava seu apreço e sua alegria de leitor.
Seria a primeira de muitíssimas vezes que leria um livro por sua causa. Hoje, sou muitíssimo felicíssimo por tê-lo conhecido e, quiçá, dele ter se tornado amigo. Em 2013, olha só a ousadia, Ruy tornou-se meu “calouro” no programa de doutoramento em Memória: Linguagem e Sociedade da UESB e, com toda justiça, dele escreveu Sérgio Eduardo Montes Castanho, seu orientador: “ele é um apaixonado pelas coisas conquistenses e um pesquisador sério, comprometido com a cientificidade do fazer histórico e historiográfico”.
Ao longo do século XX, muitos intelectuais estiveram no fronte. Freud, Husserl, Popper, Arendt, Lévinas foram alguns que exilaram-se com a instauração do nazismo ou foram ameaçados pelo antissemitismo. Outros, infelizmente, como Marc Bloch, tiveram pior sorte. O grande historiador francês foi fuzilado pelos Nazistas! Todavia, por isto mesmo, muitos historiadores foram levados a problematizar a política, o totalitarismo, o mal e a sua banalidade, a ética e, claro, o poder.
Alguns intelectuais, à imagem de Bergson, de Sartre, de Merleau-Ponty ou de Perry Anderson, empenharam-se por um mundo mais justo e assumiram posturas engajadas. Penso que todas essas orientações e inquietações encontram abrigo no trabalho de Ruy Medeiros. Porque o emérito historiador das coisas conquistenses, mesmo daqui do sertão, mas com sua habilidade de grande leitor, quer como eles lutar fronte por fronte.
Afinal, tal como aqueles, Ruy não pretende apenas suscitar reflexões e debates mas, sobretudo, empenha-se na defesa da liberdade e dos direitos humanos e, claro, na rejeição ao totalitarismo e ao dogmatismo.
Sobre Ruy, eu gostaria de dizer tantas outras coisas; porém, só me vem à memória umas que Ricoeur asseverou acerca da vida ética e as quais eu aplicaria a ele, pois a sua vida é como aquela em que há “o desejo de uma plena realização pessoal com e para os outros, sob a virtude da amizade, e, em relação com um terceiro, sob a virtude de justiça” (Paul Ricoeur, “O Justo”, p. 142).
Seja qual for a imagem que cada um se faz de uma vida plenamente realizada, saibam todos que a vida de Ruy é uma vida boa, porque (seguindo a noção aristótélica) é bem vivida e é bem partilhada, sobremaneira na função aequitate: “que eu possa, que todos possam…viver bem”. Há melhor conceito de justiça social, i. e., de solidariedade coletiva?
Creio que foi o historiador inglês Eric Hobsbawm quem disse certa vez que o mundo não vai melhorar sozinho. Que bom que Ruy fez sua parte e que bom que somos contemporâneos dele. Neste 09 de novembro de 2021, em que Vitória da Conquista celebra 181 anos de Emancipação Política, obrigado Ruy por tudo quanto você escreveu e escreve sobre a história da nossa cidade.
Pierre Bourdieu asseverou que a vida intelectual está mais perto da vida de artista do que das rotinas duma existência acadêmica. E, em seu livro “História Local e Memória”, Ruy pontua que a questão é saber se é possível ser intelectual sem combater o poder. Penso que, de todos os afazeres intelectuais, este é, justamente, o que Ruy pode fazer com mais felicidade, em todos os sentidos da palavra.
Salve, Vitória da Conquista!
Cidade que tem em Ruy Medeiros o seu historiador, o primeiro entre seus iguais. Viva!
É uma homenagem a Ruy Medeiros pelo que ele já fez e faz para a historiografia de Conquista!