Cotidiano Destaque

Estupro não é piada e praça não tem dignidade sexual.

(…) A decadência dos povos já terá ido tão longe, que quase não terão mais força de espírito para ver e avaliar a decadência simplesmente como… Decadência.(…) (HEIDEGGER. MARTIN. Introdução à Metafísica. Editora Tempo Brasileiro, 1966, Rio de Janeiro)

Por Luiz Henrique Machado de Paula

Se o politicamente correto tornou-se símbolo de um conservadorismo autoritário e que estaria a impedir que o humor possa livremente ser praticado, limitando os temas e assuntos e podando os humoristas de recursos válidos, tal situação não autoriza, a título de lutar contra essa suposta opressão, ainda que em nome da “liberdade de expressão” e da “alegria do povo brasileiro”, quem quer que seja e muito menos um representante do poder estatal, a encaminhar mensagem que absurdamente se pretende cômica ou de conteúdo dúbio e de extremo mau gosto, por aplicativo de telefonia celular, “redes sociais”, missiva ou pombo-correio.

Diante de uma situação bárbara amplamente noticiada (estupro coletivo de uma jovem), é inacreditável que certas pessoas consigam fazer piada ou metáfora sobre violência sexual, diminuindo a gravidade do fato e a condição humana da vítima.

Quando alguém, piadista, diz que as mulheres podem passear tranquilamente sem medo de serem estupradas desde que estejam com um fuzil pendurado no ombro, está a dizer, em sentido contrário, que se a mulher estiver desarmada corre o risco de ser estuprada. Ou seja, diz que o “valor” a ser respeitado é o fuzil, a arma e não a mulher. Diz que a mulher nada vale sem o seu fuzil.

como alguém querer comparar o abandono de uma praça pública com uma mulher vítima de estupro coletivo

Não querendo explicar o inexplicável e ainda que o inexplicável pudesse ser explicado, ter explicação não significa que o fato é aceitável. Mas, apenas para argumentar, podemos pensar que estamos em uma sociedade extremamente machista e esse machismo, característica cultural do povo brasileiro, se manifesta no cotidiano de várias maneiras (como alguém querer comparar o abandono de uma praça pública com uma mulher vítima de estupro coletivo, vejam o texto: Lagoa das Bateias Sofre Estupro Coletivo, publicado em alguns blogs de Vitória da Conquista/BA) e a piada sexista é mais uma forma corriqueira e estúpida de reprodução de preconceitos. Isso se o piadista for um homem.

a piada sexista é mais uma forma corriqueira e estúpida de reprodução de preconceitos. Isso se o piadista for um homem.

Se o piadista for uma mulher, podemos pensar que a cultura machista é tão forte e impregnada no meio social brasileiro que muitas mulheres sequer percebem que reproduzem e reforçam tal situação, muitas vezes aceitando as “brincadeiras inocentes” e repetindo a piada por aplicativos de celular e “redes sociais”.

E quando o piadista for alguém, independente do sexo, com atribuição específica de proteger as mulheres vítimas de discriminação e violência de gênero?

Podemos pensar que o servidor público advém da sociedade e também foi “cultivado” em meio machista e por isso reproduz o que aprendeu. O que não é uma verdade, como disse WITTGENSTEIN, referindo-se aos descombros da cultura, sempre haverá um espírito que flutuará sobre as cinzas. Felizmente existem muitos destes espíritos flutuando sobre as cinzas do preconceito e da ignorância.

Mas se nem todos são onagros que apenas reproduzem o comportamento geral machista, se nem todos agem sem reflexão, imitando a massa[i] apenas para se sentirem socialmente aceitos, se alguns flutuam sobre as cinzas, qual a explicação para encontrarmos nas agências que foram criadas para a defesa dos direitos das mulheres pessoas que conseguem fazer piadas diante de uma situação de violência sexual?

Se nossa “cultura” exigiu que o Estado implantasse políticas públicas afirmativas numa tentativa de igualar (em poder e no poder) homens e mulheres, deveria este mesmo Estado se preocupar em buscar os melhores, os mais especializados para executar tais políticas. Pelo menos deveria se preocupar em não designar pessoas que demonstram total insensibilidade ao tema, pessoas que não conseguem perceber que piadas sobre estupro são inadmissíveis.

Somente alguém insensível (talvez semelhante ao agressor) ou cujo senso crítico encontrasse no mais baixo nível é capaz de rir da indignidade de uma violência sexual. Essa é a mesma pessoa que vai fazer comentários racistas, que acredita que sua roupa de grife lhe faz superior ao outro e que se diz cristão, como se isso bastasse para nos livrar de todo o mal.

É preciso falar, se indignar, reclamar, espernear e nunca aceitar quando fazem piada com algo tão triste e absurdo, ainda que isto lhe custe olhares enviesados de “colegas” ou que aumente o volume dos que lhe adjetivam de chato e petulante (para não falar dos adjetivos impublicáveis), como diz Cátia de França[ii], chega um momento em que a pessoa precisa se revoltar e mostrar seu palavreado, ou então, assumir seu papel de mamulengo.

Vitória da Conquista, em 17 de junho de 2016.

[i] Para uma compreensão sobre massa ver Massa e Poder de Elias Canetti, editado no Brasil pela Companhia das Letras e Psicologia das Massas e Análise do Eu de Sigmund Freud, editado no Brasil por várias empresas, com excelente edição de bolso da LPM/POCKET.
[ii] Verso da composição Vinte Palavras Girando ao Redor do Sol (letra e música) de Cátia de França com trechos do poema Graciliano Ramos de João Cabral de Melo Neto.

3 comentários

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  • Assino em baixo, comentei a mesma coisa em ”outra” matéria sobre esse assunto, achei inadequada a comparação.

  • Eu sou leitor assíduos dos blogs conquistenses e lamento a compostura do Blitz ao tratar do assunto referente a matéria publicada em outro blog local. Apesar do grande enriquecimento contextual, resta-me informá-los que a palavra estupro, um dos seus sinônimos é desflorar… Por tanto cada um concluem o que for mais conveniente. Entretanto, a realidade é que há sim um estupro coletivo na Lagoa das Bateias… poder publico e população se “unem” com este intuito de estuprar, violentamente uma área de suma importância a todos nós. Por tanto, lamento a crítica do blitz em relação a matéria que por sinal é corajosa e realista.

  • Dr. Luiz Henrique Machado, boa noite,como sempre, sabias palavras.
    Att. Dr. Brito

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