O clima é de desconfiança em meio à troca de acusações entre Prefeitura e Governo do Estado e reforça a possibilidade de haver subnotificação de casos na cidade
Avoador – Era noite da última segunda-feira, 23, quando um áudio enviado ao jornalista Ricardo Gordo começou a circular em grupos de WhatsApp de Vitória da Conquista. A voz por trás da gravação era de Amanda Santos, moradora do bairro Cidade Modelo. A balconista fazia um apelo ao repórter para que ele ajudasse o marido dela a conseguir fazer o teste para a Covid-19.
Segundo Amanda, seu esposo apresentava sintomas da doença desde que havia retornado, no dia 19, de uma viagem a São Paulo. Por isso, ele procurou uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA), onde foi orientado a ficar em isolamento domiciliar. Além disso, foi informado ainda que a coleta de secreção nasal e da garganta, necessária para detectar a presença do coronavírus em seu organismo, seria feita, posteriormente, pela equipe da Vigilância de Saúde de Conquista.
Três dias depois, porém, a espera do casal pela realização do teste se tornou mais angustiante, pois Amanda e seu marido já haviam sido avisados que não tinha mais kits de coleta no município. À sua angústia, se somaram a indignação e a desconfiança sobre a ausência de casos confirmados na cidade. Foi então que ela e sua família decidiram expor a situação na mídia: “Meu marido vai precisar morrer para que os casos de coronavírus em Vitória da Conquista comecem a aparecer?”, questionou ao final do áudio.
O apelo aos veículos jornalísticos surtiu efeito. Na última terça-feira, 24, a coleta do material necessário para o exame laboratorial do seu esposo foi feita. Por outro lado, a situação enfrentada por Amanda e sua família expôs os efeitos causados pela suposta ausência desses kits de coleta na vida de conquistenses que apresentaram sintomas da Covid-19. Muitos deles ainda convivem com a incerteza de não saber se estão ou não com a doença, que já foi registrada em 17 municípios baianos.
Salvador concentra a maioria dos casos registrados de Covid-19 na Bahia. Infográfico: Avoador.
A arquiteta Carolina Santana* é uma dessas pessoas. Ela apresentou alguns dos sintomas da Covid-19, como tosse, dor de garganta e dor de cabeça, a partir do último dia 15, logo após voltar de uma viagem para a festa de formatura de um amigo, em Salvador, onde já havia casos confirmados da doença. Na terça-feira, 17, após perceber que não melhorava, ela procurou um médico, que identificou os sintomas como sendo os mesmos de uma gripe comum.
Apesar disso, ele a incluiu na lista de suspeitos e a orientou a continuar em quarentena. “A partir desse momento, eu me isolei no meu quarto, apesar de morar com minha família. Todos os meus talheres, pratos e copos foram separados. Eu procuro não sair pela casa e, quando eu saio, uso máscara”, relatou Carolina à reportagem do Avoador.
De acordo com a arquiteta, logo após chegar da consulta com o médico, ela ligou para o Labo, por ter sido informada que a organização estava fazendo testes para a Covid-19 na cidade, desde que houvesse recomendação médica. Entretanto, ela descobriu que já não havia mais testes disponíveis no Laboratório. Foi aí que ela decidiu entrar em contato com a Vigilância de Saúde do município, na quarta-feira, 18.
Primeiramente, ela respondeu a um extenso questionário, detalhando todos os seus sintomas e aspectos relacionados à sua saúde. Então, também lhe disseram que seu caso seria notificado e que enviariam um agente até sua casa para lhe examinar e realizar a coleta de secreção para dar prosseguimento ao teste. Porém, de acordo com Carolina, até o momento não fizeram isso.
Mais de uma semana depois da sua consulta e apesar de já não apresentar mais os sintomas, ela segue adotando as mesmas medidas de precaução, pois os membros de sua família fazem parte do grupo de risco e a arquiteta tem medo de acabar contaminando algum deles por não ter certeza se está ou não com a Covid-19. “Me sinto sozinha e muito mal de ter algum contato com eles e isso acabar acontecendo. Se eu tivesse a certeza de que não estou com o vírus, eu estaria em quarentena, mas junto com eles. Porém, não saberei se tenho a doença ou não porque simplesmente não tenho como testar”.
Na página da Prefeitura Municipal no Facebook, chamou atenção dos internautas na noite dessa quarta-feira, 25, o comentário da conquistense Poliana Gonçalves em uma publicação na qual o prefeito Herzem Gusmão agradece aos profissionais que estão “na linha de frente do combate à Covid-19”. Em seu relato, Poliana se identifica como uma dessas profissionais e conta que está com sintomas da doença. Diz ainda que ligou três vezes para a Vigilância Sanitária para informar o seu estado de saúde, mas destaca que não obteve nenhum retorno.
Só hoje, quando ela decidiu se dirigir até uma UPA para fazer uma consulta, foi avisada pelo médico que a atendeu que seus sintomas são, sim, de Covid-19. “Já me falaram que o teste não vai ser feito em mim. Falaram pra esperar pra ver como vou ficar com o isolamento. Febre não passa com isolamento. Falta de ar não passa com isolamento. O teste é 500 reais. E aí, querido prefeito? É me isolar e esperar a morte?”, questionou.
Impasse entre PMVC e Governo do Estado
A falta de testes foi denunciada pela própria Prefeitura Municipal de Vitória da Conquista, que publicou nota, no dia 22, afirmando que eles são de responsabilidade do Governo do Estado e que este não estaria repassando os kits necessários para a coleta das amostras de secreção que são encaminhadas para análise no Laboratório Central de Saúde Pública (Lacen), localizado em Salvador. É de lá que saem os resultados, que duram, em média, 48 horas para serem divulgados, segundo a Secretaria de Saúde do Estado (Sesab).
A Prefeitura afirmou que é também do Lacen que são enviados os kits utilizados para a realização da coleta. A assessoria do Governo do Estado, no entanto, também divulgou nota em resposta à denúncia da PMVC, no dia 23, dizendo que “a coleta do material em pacientes com sintomas da Covid-19 é feita com aparelho descartável disponível em qualquer unidade básica de saúde”. A reportagem do Avoador foi até dois postos de saúde da cidade, na terça-feira, 24, para tentar checar essa informação. Porém, fomos informados por funcionários dessas unidades que eles estão estritamente proibidos de dar qualquer declaração à imprensa sem autorização da Secretaria Municipal de Comunicação.
Já nessa quarta-feira, 25, uma fonte anônima nos enviou uma nota técnica que parece contradizer o posicionamento emitido pelo Governo do Estado. O documento, elaborado pela própria Sesab e datado de 28 de fevereiro deste ano, descreve as instruções para coleta e cadastro das amostras dos casos suspeitos de Covid-19 na Bahia. Mas constam nele também orientações para solicitar os kits de coleta ao Lacen, que, por sua vez, é abastecido pela Fundação Oswaldo Cruz (FioCruz). 17,9 mil testes foram distribuídos a Lacens de todo o país até a última quinta-feira, 19, a pedido do Ministério da Saúde.
Em Laboratórios como o de Salvador, são disponibilizados dois tipos de materiais, segundo a nota: um “tubo plástico com tampa de rosca com Meio de Transporte Viral” e um “Swab de Rayon” (similar a um cotonete). O tubo, responsável por preservar a amostra coletada com o Swab, seria o material que, segundo a PMVC, estaria em falta, impedindo que a coleta fosse realizada em Conquista e enviada ao Lacen. Em réplica da Prefeitura à nota emitida pela assessoria do governo estadual, foi afirmado ainda que os resultados dos testes não têm saído em até 48 horas, mas sim em uma média de cinco dias.
Diante da troca de acusações entre município e estado e da falta de transparência de ambas as partes, a resposta sobre a quem recai a responsabilidade pela não realização dos testes permanece duvidosa e os riscos de contaminação comunitária imensuráveis. O Avoador solicitou posicionamento da assessoria de comunicação da Sesab sobre a situação, mas não obtemos retorno até o fechamento desta reportagem.
Nossa equipe também procurou a Secretaria de Comunicação de Conquista para solicitar uma entrevista com o secretário municipal de saúde, Alexandro Costa, acerca do assunto. Como também não obtivemos resposta positiva até o fechamento desta matéria, entramos em contato com o Call Center implantado pela Prefeitura para tentar entender o protocolo que está sendo adotado pelo Poder Executivo municipal para verificar casos suspeitos de Covid-19 diante de todo esse impasse.
Prioridades na realização dos testes
Um dos atendentes nos disse que a primeira recomendação passada a um paciente que liga para o Call Center e diz ter sintomas do coronavírus é o isolamento domiciliar por um período de sete dias e a auto-observação. Segundo ele, só se não houver uma melhora no quadro de saúde da pessoa após esse período, ela deve procurar uma UPA. A partir daí, o médico que a atender tomará as medidas cabíveis e indicará a necessidade do teste ou não. “Infelizmente, não tem teste para todo mundo. O ideal é que tivesse”, comentou ele.
As pessoas indicadas para o teste são atendidos em suas casas por uma equipe da Vigilância de Saúde responsável por realizar a coleta da amostra que é encaminhada para o Lacen. Como não há kits em número suficiente para todos os casos suspeitos, segundo o atendente, estão sendo priorizados três tipos de pacientes: aqueles que apresentem quadro grave de saúde; aqueles que, apesar de terem sintomas brandos, fazem parte do grupo de risco; e aqueles que tenham estado em país ou cidade onde a incidência de casos confirmados é alta.
Esse protocolo segue orientações do Ministério da Saúde e também está sendo adotado por hospitais particulares da cidade, como o IBR e o Samur. Segundo reportagem do G1, o ministro Luiz Henrique Mandetta anunciou no sábado, 21, que casos leves passarão a ser testados somente depois que o país receber mais kits para realização de diagnósticos.
Entretanto, a medida faz com que não se saiba o real número de casos existentes nos âmbitos local, estadual e nacional e vai na contramão do que recomenda a Organização Mundial de Saúde (OMS), que é “isolar, testar, tratar e localizar”, pois essa seria a melhor forma de achatar a curva de contágio, segundo o órgão. Com isso, mais pessoas ficam sujeitas à contaminação, caso não preservem o isolamento. No vídeo abaixo, é explicado em detalhes como o teste é realizado:
O panorama do coronavírus em Conquista
De acordo com o último boletim epidemiológico divulgado pela Prefeitura Municipal de Vitória da Conquista nesta quarta-feira, 25, já foram identificados 109 casos suspeitos de coronavírus na cidade até o momento. Desses, 35 foram descartados e outros 74 ainda aguardam análise laboratorial. De ontem para hoje, apenas um caso saiu da lista de suspeitos, que cresce a cada dia. Além disso, a cidade é a única entre as 11 maiores da Bahia que não registrou confirmação da doença causada pela pandemia.
Apesar disso, conforme já mostrado pela imprensa conquistense, os dois pacientes com casos confirmados da Covid-19 na região sudoeste desceram no Aeroporto Glauber Rocha e ainda visitaram parentes antes de irem para suas cidades. É válido lembrar ainda que Vitória da Conquista é dividida pela BR 116 (popular Rio-Bahia), uma das avenidas federais mais movimentadas do país. E o alto fluxo de pessoas no próprio aeroporto e até mesmo no Terminal Rodoviário, que teve suas atividades suspensas no dia 21, também preocupam a população.
Somados à falta de testes, todos esses fatores foram responsáveis por aumentar a desconfiança dos conquistenses com relação à possível existência de casos subnotificados de Covid-19 no município. A possibilidade foi admitida, inclusive, pela própria Prefeitura. Tanto a imprensa quanto a população da cidade têm cobrado mais transparência nas ações da saúde municipal.
Curva de crescimento do número de casos suspeitos de coronavírus em Vitória da Conquista. Infográfico: Avoador.
Nivaldo Santana*, 45 anos, conta que foi um dos primeiros casos suspeitos na cidade. Pouco depois que identificou os sintomas, marcou uma consulta com o clínico geral de um posto de saúde. No dia dessa consulta, além de estar gripado, foi verificado que sua temperatura corporal também estava alta. Ele tinha febre.
Então, recebeu um atestado de três dias e foi orientado a ir para casa. Lhe disseram ainda que um agente de saúde iria até a sua residência fazer o teste para a Covid-19. Assim foi feito. Nivaldo teve amostra de sangue coletada para ser encaminhada para análise no Lacen. Contudo, ele ressalta que nada mais foi esclarecido a ele depois disso.
O resultado, ao qual foi notificado depois de cinco dias, deu negativo, mas não lhe foi apresentado comprovação alguma do diagnóstico. “Deixaram muito a desejar, nesse sentido. E ainda me deixou com uma pulga atrás da orelha. Só acreditei mesmo [que não tinha o coronavírus] depois que todos os sintomas passaram e eu fiquei bem”, explica.
As críticas ao trabalho de prevenção do coronavírus realizado pela PMVC e também pelo governo estadual não cessam. Apesar de o teste do marido de Amanda já ter sido enviado para o Lacen, ele não foi encaminhado para um hospital, ainda que sua família considere grave o seu estado de saúde. Assim como ele, Carolina continua a enfrentar a solidão do isolamento até que possa ter certeza de que não está contaminada pelo coronavírus. Já para Poliana, tudo isso é fruto do descaso de ambas esferas do Poder Executivo.
Em um vídeo publicado uma hora depois de ter comentado na publicação da PMVC no Facebook, ela disse que não acredita nesses casos que estão sendo descartados no município. “Eles estão descartando os casos sem nem ao menos fazer o teste. Não acreditem, ainda mais dizendo que Conquista não tem caso suspeito. Brumado, que é uma cidade menor, onde tem menos fluxo de pessoas, já tem um caso confirmado. Não tem lógica”.
*Nome alterado para preservar a identidade da fonte.
Foto de capa: Getty Images.
*O Avoador é um produto laboratorial da disciplina Jornalismo Digital, pertencente à grade curricular do curso de Jornalismo da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb).