Após retornar de viagem a São Paulo, aposentado é diagnosticado com coronavírus e família se torna vítima de ataques e ameaças em grupos no Whatsapp e nas redes sociais
Avoador – Há 20 anos, o aposentado Juscelino Gomes Morais, 69, faz tratamento contra o glaucoma em São Paulo, no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina na USP (Universidade de São Paulo). O que era para ser mais um exame de rotina, em março de 2020, transformou a sua vida: pegou covid -19 e os sintomas graves da doença o colocaram na UTI (Unidade de Terapia Intensiva). Como se não bastasse, de momento, sua família, mulher e filhos são vítimas de mentiras e ameaças compartilhadas em redes sociais e no aplicativo de mensagem Whatsapp.
Pai de três filhos, Juscelino viajou no dia 10 de março com sua esposa, Elenice da Silva, 63 anos, até a capital paulista para cuidar da visão em um dos hospitais públicos de referência no Brasil. Três dias depois retornou a Conquista em um ônibus da empresa Águia Branca. No dia 15, Elenice começou a apresentar sintomas de uma gripe leve, como tosse seca. Ciente da pandemia, o aposentado decidiu dormir em um colchão no chão no quarto de ambos, deixando a esposa sozinha na cama.
O casal evangélico resolveu também se isolar do restante da família. Além de Juscelino e Elenice, o filho e a filha, a nora e o genro, e mais três netos dividem um sobrado de dois andares em Vitória da Conquista. “Meu pai tomou logo a precaução e se separou de todo mundo, pois já tinha conhecimento da existência do coronavírus e da situação de São Paulo”, relembrou Marcone Fernandes Silva, 35 anos, um dos filhos do casal.
A família ainda se preocupou em contatar a Prefeitura Municipal. Avisaram que o pai e a mãe tinham viajado a São Paulo e que um deles apresentava sintomas leves. A Vigilância Sanitária então, segundo Marcone, disse que era preciso acompanhar os sintomas por cinco dias e, caso evoluíssem, eles deveriam entrar em contato com o setor. O órgão orientou também que ficassem em quarentena, isolados do restante dos familiares. Neste momento, entre os dias 15 e 16 de março, não houve coleta de material para a realização de testes.
Passados seis dias do primeiro contato com a Vigilância, Elenice não tinha mais tosse, mas Juscelino começou a apresentar o mesmo sintoma. Em 30 de março, o quadro do aposentado se agravou, passou a tossir forte. “Eu escutava ele tossindo aqui debaixo. Não era normal aquela tosse. Chamei a ambulância que, em um primeiro momento, não quis vir. Expliquei a situação, e eles vieram. Chegaram aqui com as roupas, preparados para atender alguém com essa doença”. O aposentado então foi internado no Hospital São Vicente.
Dois dias depois ele foi internado na UTI por causa do agravamento dos sintomas de insuficiência respiratória. No dia 5 de abril, saiu o resultado de que Juscelino estava com covid-19, tornando o sexto caso em Conquista da doença. Após o diagnóstico, a Secretaria de Saúde colheu o material dos outros oito membros da família, dos quais sete já deram negativo, falta apenas o da esposa, Elenice. Desde o primeiro resultado, eles foram orientados a continuarem em quarentena e a deixar Elenice afastada de todos. Ela encontra-se desde então sozinha na parte do sobrado pertencente ao casal. A comida é deixada em um móvel e ela só se comunica com os demais por meio do celular.
Mentiras compartilhadas
Por conta do isolamento, Elenice acabou compartilhando com uma amiga da igreja a situação que vivenciava. Ela contou sobre o diagnóstico de coronavírus do marido e sobre sua angústia. Mas a amiga distribuiu a mensagem entre conhecidos em grupos de Whatsapp. Daí em diante, a dor da família sobre a situação de Juscelino também se transformou em medo por causa da quantidade de mensagens mentirosas e agressivas que passaram a receber.
Em uma delas, o casal foi acusado de ter vindo de São Paulo em uma van clandestina. Outra mensagem dizia que Elenice andava pelo Bairro Alto Marrom espalhando o coronavírus de forma irresponsável e que a polícia foi até a casa cobrar satisfações. Teve também quem dissesse que o supermercado em frente a casa da família estaria contaminado, então não era seguro passar por ali.
Houve ainda uma publicação dizendo que a Polícia teria obrigado os membros da família a fazerem o teste da covid-19, pois não queriam fazer a coleta de material. “A mensagem mais absurda foi aquela que espalharam que meu pai tinha morrido agora no dia 6 de abril. Imagina se minha mãe lesse uma mensagem dessa? Nós a tiramos dos grupos do Whatsapp, pois ela está muito deprimida e fica se culpando por ter confiado nessa amiga. Nem queremos pensar a dor que ela sentiria e como ficaria. Ela e meu pai têm 50 anos de casados”, desabafou Marcone, o filho do casal.
Marcone contou que a mensagem de Elenice enviada à amiga já chegou até o Rio de Janeiro e São Paulo, onde familiares receberam em grupos de Whatsapp de desconhecidos. Além disso, mais mensagens ameaçadoras chegam a cada dia. “Somos pessoas responsáveis. Desde o primeiro momento que desconfiamos dessa doença, entramos em contato com a Prefeitura, ficamos isolados e não queremos e nem colocamos a vida de ninguém em risco. Minha mãe está sozinha no espaço dela, sofrendo. Queremos respeito. Estamos sofrendo. Nosso pai está entre a vida e a morte”, relatou.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), paralelamente à propagação do coronavírus, há um outro surto no momento que é a difusão massiva de desinformação. No Brasil, as agências e editorias de checagem Lupa, E-Farsas, Aos Fatos e Estadão Verifica têm alertado sobre o aumento da circulação de informações falsas nas redes sociais e no Whatsapp durante a pandemia.
A situação tem preocupado as principais instituições no enfrentamento à doença no Brasil e na Bahia. Por conta disso, o Ministério da Saúde e a própria Secretaria de Saúde da Bahia criaram espaços específicos em seus respectivos sites para desmentir conteúdo mentiroso sobre o coronavírus. Essas mensagens desinformam a população, levando à desorientação, e colocam em risco vidas inocentes. Em 2014, na cidade de Guarujá, estado de São Paulo, uma cabeleireira foi assassinada porque mensagens mentirosas pelo Whatsapp a colocavam como sequestradora de crianças.
A Lei
Ainda não há lei específica contra quem produz e espalha mentiras ou boatos em redes sociais e no aplicativo Whatsapp, exceção apenas para as informações falsas contra políticos em campanhas eleitorais. No entanto, segundo a advogada, Gleyce Kelly Nobre Braga, é possível abrir investigação e uma ação judicial com base em outras normativas. A vítima de informações falsas deve guardar todas as evidências do crime, salvando fotos, e-mail, textos, vídeos ou áudios sobre o delito.
Em seguida, deve-se buscar uma delegacia especializada em crime virtual e fazer um Boletim de Ocorrência (BO). Caso onde more não tenha uma delegacia desse tipo, o BO pode ser registrado na delegacia que existir. Além disso, a vítima pode procurar um cartório de notas e fazer uma ata notarial. Esse documento é um instrumento público (a exemplo da escritura pública) pelo qual o tabelião, por solicitação da pessoa interessada, relata fielmente fatos, coisas, pessoas ou situações para comprovar a sua existência ou o seu estado e serve como prova para responsabilizar o autor da propagação.
Tendo provas, a vítima pode procurar um advogado para ingressar com uma ação e requerer judicialmente a remoção da informação falsa e a responsabilidade do autor que propagou a mensagem. É possível pleitear também uma indenização por danos morais, diante das inverdades divulgadas.
Além das consequências cíveis para quem posta ou compartilha informações falsas, a advogada explica que ofender alguém pode gerar também implicações na esfera criminal, caso configure um dos tipos penais previstos no Código Penal Brasileiro, como por exemplo: difamação, calúnia ou injúria denominados crimes contra a honra.
Foto de capa: Avoador
Avoador é um Projeto de Extensão da UESB: “Jornalismo como Transformação Social”