Uma história de que sofrer não é em linguagem alguma
A má sorte lhe era tão recente e tão presente nas horas ao longo do tempo que muitas coisas nem careciam de um nome. Tampouco de fazer esforço para lembrar. Para mencioná-las, bastava-lhe olhar nos seus olhos baixos, pardos e mortiços ou reparar-lhe nas mãos e na fronte deprimida. Quem a via, Soledade, esquecida em cada dia, dia após dia, todos os anos?
Segunda-feira, terça-feira, quarta-feira, quinta-feira e sexta-feira: café com pão, almoço, janta, arrumação e varrição. Soledade corre, cerca, muita força, vai depressa, vai correndo, vai na toda, acelera, é preciso muita força… Soledade marcha às carreiras, a todo pano.
Recolhe o que está fora do lugar, e ela, sozinha, organiza armários e gavetas, escorre, descasca, amassa, cose, abre as cortinas para arejar, lava a louça ordinária e sanitária, enxuga, guarda a louça, não sem abluir todos os panos de chão, os panos de pia e os panos que servem para tirar poeira dos móveis, limpa a pia da cozinha para logo depois sujar e, assim, vai sua vida, seu caminho: a piar solidão e tristeza, piando, piando, piando…
Sábado, ela alimpa a geladeira e o fogão por dentro, tira gordura dos azulejos e dos rejuntes, muda os colchões de lado, troca as toalhas, muda os estofos de cama e, com o seu desbotado avental de ganga azul, Soledade lava tênis, fronhas, lençóis, capas de almofadas, tapetes, roupas e muitas coisas que não figuram no monte, porque a inclusão delas repugna à sensibilidade da gente.
Completamente só, ela reúne tudo de montão, põe no varal para secar, depõe o que é preciso quarar, recolhe, mete na goma e alisa depois com o ferro de engomar, faz os reparos que precisa, apregoa e reforça botão, abainha calça, ajusta bolsos e elásticos, segue remendando, costurando o que a sua inquietação descose antiépica entre panelas, vassouras, baldes, detergentes, desinfetantes, lava-louças, esponjas, escovas, lixos, sabão de coco e sabão de andiroba a todo preço, entre a quitanda, o mercado, o querosene, as prateleiras cheinhas de latas, garrafas e fardos, a balança Filizola de prato antiga, tudo parado na mesma imobilidade — parado e, ao mesmo tempo, envolto num amplo sistema de um tom irônico.
Domingo, não há hora ou lugar em que ou onde gostaria de ficar e gozar, em silêncio, da paz do dia santo. Soledade acorda mais cedo, vai à igreja, provê a refeição, um pouco antes e um pouco depois, serve marido no quarto enquanto ele espera o futebol na TV e não pode ser pelada nunca. Porque a nudez provoca sentimentos confusos no marido, salvo em algumas exceções em que fizeram um amor tranquilo e são, de serenos marido e mulher. “Deus meu, isso dura mais tempo que uma dor”. Deus meu, em que escritura, divina ou humana, já foi dado como delito punível amarem-se duas de suas criaturas?
Há tempos, Soledade convencera-se de que só os unia uma ilusão que exigia dela uma doida a meter-se no serviço na obrigação de todos. E, ainda, a muito custo e muito pelejar, ser expedita, loquaz, alegre, firme, desimpedida, boas-caras sempre e sem que ninguém desse que era ela, a bem dizer, quem sustentava a casa com o que fazia cozinhando, lavando e engomando.
E os demais da casa, o que fazem? Fazem de um argueiro um cavaleiro, porque todos se abandonam como reféns de suas certezas. As pessoas alarves e estúpidas são convictas sempre. “Ideia fixa? Antes um argueiro, antes uma trave nos dois olhos”. Sempre brutas, as caras de réu, de tão feias, não sabem que a solidão, para ela, é o contrário da solidariedade. “Gente de ontem, que não sabe nada”. Cavalos batizados, amargos demais, abraços de menos. Té aqueles que lhe rasgaram o ventre, quem são a lhe ferir os calcanhares? Não sabem que a diferença entre o inferno e o céu é a solidariedade?
No inferno, as pessoas têm os braços virados para as costas e, para comer, chafurdam-se na comida, se atolam como se estivessem em um chiqueiro de porco, lambem e chupam o chão da comida. No céu, as pessoas também tem os braços voltados para as costas, mas, ao contrário do inferno, no céu elas alimentam umas às outras. A solidão de Soledade nasce de dentro e se retorce. Má sorte foi o amor que não reteve.
Contudo Soledade não vai ter a vida dos que aceitam quaisquer coisas, nem a vida de quem vai na valsa das teimosias em ponta de faca, embarafustada.
“Palavra, sinceridade mesmo, não sou feliz, mas não sou porco, não sou curta como coice de porco. Amarrei meu cavalo no toco errado. Mas é hora do perdigueiro desarrear a caça”. Soledade quase, quase expira enquanto desvaira… A juventude foi-se com o tempo e as ilusões com ela. Juventude que lhe deixou umas poucas carquilhas nos cantos do rosto.
O marido se lhe dava casa e pão, e lhe dava o castigo. O que, ao homem, parecia-lhe bastante. Aquele homem andava bem longe de ser aquilo que ela se namorou dele. Quem lhe quebrou o encanto, nunca lhe amou. Mas quem acreditaria se dissesse, arrazoadíssima, as suas razões?
Naquela noite, enquanto servia o jantar, Soledade aproveitou para repassar, mentalmente, o plano do dia seguinte, recontou os dinheiros que juntou pouco a pouco, às amealhas, com a venda dos móveis usados e que ninguém se deu por aquilo. Se riu da tendência ingênita, orgânica, do marido ali sentado à frente dela: “cavalo grande, besta de pau”, o qual nem se deu também por uma mala com fulvas pregarias abaixo à cama dos dois, em que se amealhava o ganho líquido. Tolice que não deixou de lhe ser útil!
Naquela noite, a derradeira, o marido tomou a sopa; engoliu um comprimido, pois queixava-se de dores nas costas; exigiu a janta e abriu para o ar a sua voz áspera: “sopa não é comida”. Soledade, quase apelando para a ignorância, ainda se conteve. Evitou confronto, abdicou da honradez. Simplesmente, aquela era a noite de se evitar fadigas ulteriores. Não há dor que não receba um certo lenitivo de uma decisão tomada com sangue no olho e com a vigília da insônia cada vez mais acesa.
Naquela noite, como de costume, ninguém reparou nada enquanto Soledade retirava a louça e nem se lhe fizeram menos rogos. “Um cafezinho, Soledade”… “Um travesseiro aqui na sala”… “Ajeita essa televisão aqui, Soledade”… “Meu remédio, Soledade, ‘tá na hora”… “Mãe, mãe, oh mãe, tá me ouvindo chamar não?”… “Não lhe falei para não entrar no meu quarto, mãe?”… “Mãe, minha camisa, mãe, cadê?”… “Mãe, meu vestido, mãe?”… “Eh, mãe, a senhora está com a cabeça morando aonde, hem?”… “Fala com esses meninos para ficarem quietos, aí, Soledade. Ninguém pode ver um jornal sossegado?”…
Naquela noite, como em outras noites incontáveis, Soledade não dormiu. Porém não se descurou, trazia consigo cem anos de solidão e o bastante, com certeza, para não resistir a tanto tempo de abandono. Até se permitiu rir um riso traquinas na escuridão da noite que caía, olhava o futuro enquanto o marido dormia como um lajeado exausto. De manhãzinha, se levantou como sempre às 5h30 da manhã.
Antes um pouco, o marido a procurou mas, ante a inabalável firmeza de sua decisão, não quis dar ao homem aquele prêmio. “Não! Hoje não… estou naqueles dias” e Soledade guardou para si aquele gozo: o homem, previsível, fácil de manejar, como uma espécie de títere. E o “tonto-pasmado” se virou para o outro lado da cama com cara de enjoo e algum aborrecimento. Remergulhou nos lençóis e dormiu.
E o dia correu até pouco depois do meio-dia sem nenhum sobressalto para os restantes daquela casa. Soledade fez tudo como as de costume. Acompanhou quem era de estudar sair para a escola e quem era de trabalhar, para o trabalho. “O que tem pra janta?”, o marido quis saber. “Ainda não sei o que é, mas você vai ver”, respondeu Soledade.
À hora desejadíssima, foi ao banheiro, lavou-se, mudou de roupa, recolheu as sandálias, calçou os sapatos, conferiu as trancas dos fundos e os ferrolhos das janelas, voltou ao banheiro, penteou os cabelos, se olhou no espelho definitiva e ninguém sabe com que extraordinário requinte vestiu o cuidado de sua pessoa e mais o esmero de seu vestido estampado floral, avivado no peito por um pequeno broche de lua e estrela. Calçou os sapatos, e, em lugar do traje, pôs a Vida.
Saiu de casa com a cabeça robusta, inteira e aprumada, como um cupim de touro, mas tão leve como se caminhasse na rua uma menina saltando do chão, com o coração aos pinotes, com as maçãs do rosto em fogachos lívidos, súbitos, luminosos e… para nunca mais. Apagou tudo do quadro de um dia para o outro, era uma mulher nova naquela tarde, numa revirgindade perpétua da emoção.
Soledade nunca acertou o passo com a tropa. E porque um dos maiores encantos das viagens é iniciar o regresso, Soledade tomou um ônibus para a Vida que julgava interrompida, esticou mais as pernas, se recostou no banco e debruçou para trás a cabeça. Dentro do peito, um coração quase de fora, um coração delirante, uma caixinha cuja chave ninguém nunca jamais, em algum ou qualquer tempo passado ou presente, soube onde ficava, onde fica.
Soledade saiu. Hora que volta?
Nunca. Nunca de tarde.
Nunca de São-Nunca.
Saiu pra não voltar.
— Para Drª Gabriela Garrido, delegada titular da Delegacia Especial de Atendimento à Mulher (Deam), em Vitória da Conquista, e seu imprescindível trabalho para que as mulheres vítimas recorram à Polícia Civil. Mas, sobretudo, pelo seu vigor de fazer com as mulheres “learn to leave the table/ When love’s no longer being served” (aprendam a se levantar da mesa / quando o amor não está sendo servido mais) e mostrar a todo mundo que são capazes de se levantarem.
— Para Gláucia, a Celeste; isto é, a cerúlea; isto é, da cor do céu. Para Samir, Claire e Mont Blanc, os primeiros que, pacientes-silentes, ouviram a récita dessas linhas ao modo de um conto.
— Gratidão aos professores Vanderli Marques, o “Bite”, e Lucas Pereira Novaes. Lucas, ao ler o manuscrito, comparou-o ao filme georgiano “My Happy Family” (2017, 180 min.) — o qual eu não conhecia e recomendo.
— Em memória de Nina Simone (1933-2003), já que este texto é livremente inspirado na sua biografia e na canção “You’ve Got to Learn” (Il Faut Savoir), no disco I Put a Spell on You (Philips Records, 1965).