Em 1982, enquanto Heleusa Figueira Câmara (1944-2019) publicava seus contos reunidos no volume “Mulheres Acorrentadas”, editado pela Editora Cátedra, eu estudava no Colégio Estadual Fernando Spínola. Filho de uma empregada doméstica e costureira com um ex-frentista de posto de gasolina, agora exercendo a função carregador, morávamos no bairro Patagônia, portanto bem pra lá do lado de lá da Rio-Bahia. Quem viveu Conquista na segunda metade do século XX sabe bem o que isto significa. Naqueles tempos, morar “do lado de lá” era temível e terrível. Lembro de algumas recomendações para não dizer onde morávamos, porque morar na Patagônia era um ultraje à credibilidade pública. O apelido do bairro era pata-sem-vergonha, inclusive. E nosso crédito era tamanho que dez anos mais tarde soube de uma vizinha que se viu obrigada a terminar o namoro com um rapaz morador do São Vicente e do “lado de cá da Rio-Bahia”.
A mãe do namorado fazia de tudo contra aquele relacionamento. Tanto o fez que conseguiu. Mas, quem botou o ponto final naquele enredo foi mesmo a minha amiga. E a gota d’água aconteceu quando a sogra lhe disse um dia: “Já falei com Ronaldo (nome fictício) que eu não quero saber dessa futrica na minha casa de jeito nenhum. E outra”, acrescentou furiosa, “não quero saber de uma maria-ninguém da Patagônia fazendo ‘pizêru’ na minha porta”. Haveria, afinal, alguma mulher direita e honesta naquela Patagônia? Questionava-se aquela mãe tão ciosa da honra e das virtudes familiares que foram o apanágio dos antigos povos. Duvidava e muito! “Duvideodó”. Umazinha sequer que se desse o respeito não existia naquele bairro para aquela desvelada, ardente e maternal senhora.
Minha vizinha contava que, antes mesmo que pudesse responder ao afrontamento, a sogra saiu “sacolejando o tro-ló-ló” ligeiro e fácil. Foi embora toda gabola com seu requebro e lembrando, talvez, a letra de algum samba. Foi embora oferecendo “a bunda por resposta”, expressão que Fred Navarro, em seu “Dicionário do Nordeste”, informa que é sair sem avisar ou sair à francesa. Não na Patagônia dos anos 1980-1990! Oferecer “a bunda por resposta” é quando a pessoa não está nem aí para o que você disse ou vai dizer, pediu ou vai pedir; faz que não quer ouvir, finge que nem ouviu, se vira e vai embora de caso pensado e no maior desprezo, ora.
No momento em que relembrava essa história, minha amiga estendia os braços para o alto, abria as mãos, as distanciava bem uma da outra e bradava: “tro-ló-ló enorme, desse tamanho”. Pela fúria e pelos gestos, deveria ser grande mesmo — assaz protuberante. Deveria ser uma bunda e tanto, das de tanajura, eu pensava. Aliás, tão grande e assaz como a dor de seu coração ou a apatia do namorado. Terminou com ele, foi inflexível. Não toleraria aquela impassibilidade sem defensa.
E foi assim, com tais memórias afetivas e entre as mais familiares realidades da minha existência, que me deparei com o triângulo amoroso de Zé, Idalina e Zulmira em um dos melhores contos de “Mulheres Acorrentadas”, de Heleusa.
Na história “Feitiço no Zé”, Zulmira seduz o Zé e ela se apresenta como largada, sozinha com duas filhas pequenas nas costas, porém é dona de duas casas alugadas no Bairro da Patagônia; consequentemente, Zulmira era toda empelicada e resolvida na vida. Logo, logo Zé vai começar a perceber quanto havia verdade e quanto havia mentira nas palavras de Zulmira. Era tudo embusteirice, menos as duas filhas. Na verdade, nem uma “meagua” Zulmira não possuía. Antes, morava em um cômodo alugado, o pagamento sairia do bolso de Zé, e era um bolso ruim de cortar.
Zulmira, por sua vez, se dará conta que cada um é como cada um. Zé, casado com Idalina, era pai de sete filhos! Prometera largar a esposa, e nada. Então, Zé e Zulmira são lé com lé e cré com cré, e cada qual com os da sua igualha.
Minha avó materna, Dona Odília, dizia que o pior dos maridos é o marido enfastiado — algo que ela bem sabia porque casou-se pelo menos umas três vezes. E o fastio de Zé espertou Idalina. Não demorou muito. A mulher ficou em alerta. Percebeu um bicho roendo e que continuava roendo, zoando, zoando, parecendo ora morrer de todo, ora vibrar ainda, mas sempre incomodando seu juízo. E Idalina, roída pela desconsideração do marido, sente o cheiro da outra — que a esta altura já estava grávida de Zé. Idalina descobre tudo, reúne os três filhos maiores (Lene, Ritinha e Gilda) e, empunhando lascas de lenha, os quatro surram Zulmira, que se salva por pouco. A vida de Zé se complica totalmente.
Posteriormente, as duas mulheres vão recorrer ao mesmo tipo de ardil. Idalina coou um café com calcinha de menstruação e guardada fazia tempo e Zé bebeu com gosto, repetidas vezes e até a última gota. Zulmira não ficou por baixo. Serviu seu café com pó de mortalha de donzela e terra de cova nova, o corpo ainda nem tinha esfriado direito. Zé não resistiu, cedeu aos encantos de Zulmira que ainda trazia uma mãozinha de anjo, roubada no cemitério a meia-noite de uma sexta-feira da Paixão e defumada com muita reza e muitos sortilégios de Dona Chica, a benzedeira. Portanto, era de supor que ambas, Idalinha e Zulmira, rezavam de uma paixão pura. E rezavam pelo mesmo breviário. Zé engrandecia-se, mesmo, aos olhos das duas mulheres, como se, de inopino, se encantasse num príncipe.
— E Zulmira reforçava, então, a fama do nosso bairro da Patagônia? Não creio.
Não penso que a literatura seja esteio moral e nem anseio desejoso da sociedade. E aqui eu divirjo de muita gente. A literatura não representa fielmente ou facilmente a realidade, também não age diretamente sobre ela. Já Aristóteles defendia não a veridicidade, mas a verossimilhança. E, para Roland Barthes, o texto literário faz girar os saberes, porém não fixa, não fetichiza nenhum deles. “O que garante a sobrevivência da literatura não é a sua defesa teórica nem a sua promoção por instituições e, ainda menos, o seu gerenciamento pela indústria cultural. É o desejo de escrever e o prazer de ler.”, diz-nos a célebre crítica Leyla Perrone-Moisés, que fora aluna de Barthes e amiga de um sem-número de escritores consagrados, como Haroldo de Campos, Osman Lins, Julio Cortázar, Waly Salomão, Paulo Leminsky, José Saramago e Lévi-Strauss, por exemplo.
E o prazer de ler Heleusa é imenso — melhor: os prazeres são imensos. Não tem medida nem nunca terá. E “O Feitiço do Zé” é um dos mais deliciosos contos de “Mulheres Acorrentadas”.
Ao todo, o livro nos traz 15 narrativas em que se tem a certeza de que Heleusa domina o ofício de escrever com muita firmeza, aliás, como assegura Afrânio Coutinho em seu prefácio, Heleusa tem o dom de contar. É perceptível isto em “Joana da Catanica”, insólita e inabitual história da empregada doméstica Joana, tão incomum quanto o caso de “Amor em Parceria” das amigas Lília e Alzira; e “Aposentadoria Compulsória”, sobre a deslumbrada e muito popular Noélia. Merecem ainda destaque “Jantar, Joias e Mercedes”, “A Mulher Diferente” e “O Recital”.
Porém é com o conto “Pingos de Ontem” que mais rio. E rio como o mar quando se põe a rir gargalhadas de espuma.
“Pingos de Ontem” fala das travessuras de uma menina que, ao lado das amigas Lucinha e Eliane, vivia na casa de Dona Lígia onde se dependurava em uma mangueira e, usando seus galhos como trapézios, inventava mil ginásticas e se considerava como artista que o mundo perdia de ver… Esta história é a que mais me traz à soga a voz de Heleusa. É o conto que mais me prende por afeto. E trazer à soga é principalmente isso: encantar-se, cativar-se por uma coisa impossível de decifração. Como seu ex-aluno no Programa de Pós-Graduação em Letras: Cultura, Educação e Linguagens (na Uesb), ouvíramos histórias diversas sobre a infância e a adolescência de Heleusa. Contudo foi quando eu trabalhava na Secretaria de Comunicação Prefeitura, e quando ela fora Secretária Municipal de Educação, que conheci as suas peripécias naquela mangueira.
Certa vez, em um evento, creio que na Escola Municipal Lycia Pedral, Heleusa falou da árvore, a mangueira, sublinhou as brincadeiras e rematou: “Vocês não imaginam como nós trepávamos! Trepávamos e trepávamos na mangueira! Ah, como trepávamos”. E nós ríamos dela e de suas amigas trepadeiras enlaçadas nos galhos. Assim era Heleusa. Gostava de contar histórias e as contava vívida, intensa, luminosa, expressiva. Falar, depois, de Heleusa era um risco em quaisquer situações. Eu próprio presenciei isto algumas vezes. Certa vez, uma menininha que estava sentada na primeira fila de uma solenidade, arrostou a mãe: “Vamos embora, mamãe, que essa pessoa não sabe falar como titia Heleusa”! Assim era Heleusa, ela era uma mulher cheinha de harmonias consoladoras e de luminosas esperanças para uma radiante aurora.
Dizem que Clarice Lispector recomendava aos seus editores nunca mexer nas suas vírgulas. “Minha pontuação é a minha respiração”, dizia a autora de “A Hora da Estrela”. No caso de Heleusa, o sistema de sinais que ela usa transcreve elementos prosódicos da sua fala. Mais que sua respiração, é possível ouvi-la. A tua voz fala amorosa… tão meiga fala que me aquece. Que é valsa a sua branda prosa. Meu coração desentristece — é como um poema!
Praza a Deus que outros a leiam. Praza a Deus que a gente possa celebrar muito contente os 40 anos de “Mulheres Acorrentadas”. Celebremos as travessuras literárias de uma menina que partiu para o universo do encantamento em 6 de janeiro de 2019, aos 74 anos. Hoje, mais que nunca, Heleusa, guardo teu sorriso de bondades grandes, teus singelos francos olhos e aquela cara de ser boa peça. Que saudade…
— Para Diana, Mônica, Danilo e Verônica, filhos de Heleusa, e seu esposo Almir. Para todos do Comitê Proler/UESB de Vitória da Conquista; Lana Sheila Rocha; Ana Isabel; Orlando Celino; Rosália Rocha; Marília Flores Seixas e Maria do Carmo.