Opinião e Artigos

O SUBMARINO E O TUBARÃO. AVENTURAS DE UM BRASIL SEMI-FICCIONAL

Por Carlos Nascimento

Baseado em fatos, o filme K-19: The Widowmaker[1],conta a história da tripulação de um submarino nuclear soviético de primeira geração em meio ao colapso de seu reator. Em uma de suas cenas mais fortes, o comandante, interpretado pelo ator Harrison Ford, manda seus oficiais mecânicos para dentro do compartimento do reator nuclear da belonave, numa desesperada tentativa consertá-lo e conter o vazamento radioativo em curso. Sem equipamentos de proteção adequados, estes homens são, literalmente, lançados à morte. Cientes eles e, principalmente, seu ordenante. Dentre as responsabilidades do personagem central – além do submarino e da vida da tripulação – está a de evitar um conflito nuclear, uma vez que o barco se encontra submerso próximo a uma base militar norte-americana, e sua eventual explosão poderia ser interpretada como um ato de guerra.

Também nas águas do universo cinematográfico, um tubarão-branco ataca banhistas na ilha fictícia de Amity, no filme Tubarão[2], dirigido por Steven Spielberg e baseado no livro de Peter Benchley[3]. Na história, o prefeito da instância de verão insiste em manter abertasas praias, enquanto minimiza o fato de que um monstro assassino está a se banquetear dos turistas que ali chegam. Preocupado com a queda da arrecadação e a eleição por vir, este ignora os avisos do chefe de polícia (Roy Scheider) e de um cientista (Richard Dreyfuss), que lutam para impedir que novos ataques ocorram.

O ato heroico atribuído ao comandante do submarino, ao mandar parte de sua tripulação ao trabalho suicida, se justifica pelas consequências diretas e colaterais da eminente catástrofe. Já seus comandados, seja por subordinação hierárquica, seja por senso patriótico, não gozam da opção da desobediência, uma vez que, a cargo de suas competências, estão os destinos de todos naquele barco e talvez o futuro de seu país.

Já na obra de Spielberg, encena-se o clichê do político irresponsável que afronta a razão e a ciência em nome de interesses e convicções pessoais. Como normalmente ocorre, ao longo da trama, o embate invariavelmente acaba por provocar a morte de vários inocentes e o arrependimento póstumo do vilão, neste caso não do tubarão, é claro. Situação, que todos sabem, só vista em tragédias de Hollywood.

No Brasil real (?), em meio à crise da Covid-19, convivemos com episódios que oscilam entre a realidade e a ficção, entremeando o medo, a incerteza e as necessidades de sobrevivência de uma população atônita, submetida a um líder delirante de atos inconsequentes. Elementos que, se não fossem verdade, pareceriam ter saído de um clássico enlatado de terror.

Assim como em todo o mundo, aqui, muitos profissionais necessitam seguir para linha de frente desta guerra. Dado o imperativo de se manterem ativos serviços que impeçam o total colapso da sociedade, médicos, enfermeiros, garis, bancários, caminhoneiros, comerciantes de alimentos e medicamentos, dentre outros, se expõe diariamente ao risco não somente porque precisarem trabalhar para receber seus salários. Estas pessoas nadam para o mar de tubarões, adentram o ambiente radioativo, pois sem eles, o submarino, que inevitavelmente afunda, matará bem mais que seus ocupantes. Não são patriotas em sua essência, são seres humanos que, inseguros em seus EPIs (muitas vezes improvisados), estão a arriscar suas vidas e a de suas famílias para que muitos outros possam passar por este momento, tão perigoso, de forma mais segura.

Já, do outro lado desta mesma película, há outros personagens que, capitaneados por líderes e filosofias de WhasApp, tentam promover o relaxamento das medidas de isolamento social sob o discurso “heróico” de que a quebra da economia levará a prejuízos e a mais mortes do que a doença em si. Um heroísmo que difere do retratado no episódio do submarino, mas que muito se assemelha ao do tubarão, uma vez que quem irá para a água – ou para a sala do reator que vaza – não serão, em sua maioria, os mentores e propagadores dessas ideias. Serão os inocentes e despreparados cidadãos que se encontram perdidos entre a fome, o risco da perda de seus empregos e o ato sacro-suicida, necessário para prover suas famílias.

Sim, o submarino mergulha e não se conhece o fundo deste oceano. Muitas pessoas boas – ricas e pobres – perderam e perderão seus empregos e negócios. A crise gerada pela pandemia lançará à rua uma enormidade de gente sem dinheiro e sem perspectivas, e a tragédia social é certa! Contudo, quando se trata de vidas humanas, não se pode calcular prejuízos à base de matemáticas de padaria. A economia que “não pode parar” também não pode matar as pessoas para às quais nasceu para servir. Este heroísmo impositivo, que elege mártires irreconhecidos, carrega consigo a atitude criminosa, marcada por uma nítida incapacidade de se olhar o outro como igual. Vidas dispensáveis, ofertadas ao “deus mercado” em nome da salvação da maioria (?).

O tubarão – invisível como o vírus – está aí, entocaiado em cada esquina, a cada contato pessoal. Se lançar ao mar, ainda que possa ser um ato reivindicado por muitos como um direito pessoal, não pode ser incentivado de forma irresponsável, principalmente pelos que tem um porto seguro onde possa se amarrar. Não cabe ao Estado, ou a parte do empresariado, se furtar de suas responsabilidades, transferindo-as a cidadãos desassistidos: trabalhadores, pagadores de impostos e honestos como os que acham poder determinar seus destinos. Os heróis imprescindíveis a esta guerra já se encontram no front, efetivamente se sacrificando por um futuro incerto neste thriller que não se encerrará ao desligar da TV, pois continuará a repercutir em nossas vidas e em “nosso” mundo, para muito além deste momento.
Logo, importa sim, estarmos juntos e “vivos” para tentar reconstruir um planeta diferente que, mesmo imperfeito, possa dar melhores oportunidades a todos: menos heróis e mais humanos. 


[1] BIGELOW, Kathryn. K-19: the Widowmaker. US: Paramount, 2002. 
[2] SPIELBERG, Steven. Tubarão. Universal Studios, 1975. 
[3] BENCHLEY, Peter. Jaws. Fawcett, 1991.

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