Opinião e Artigos

A juventude, o Cristo de Mário Cravo, a Rádio Clube FM e a contemporaneidade de Conquista

Um pequeno ensaio sobre os anos 80

Cristo Crucificado, de Mário Cravo Júnior (Foto: Alberto Maraux/SSP)

O álbum “Rita Lee”, de 1979, ficou mais conhecido como “Mania de Você” por causa do sucesso estrondoso desta música. Porém, aquele disco traz também os singles “Chega Mais” e “Doce Vampiro”. É um trabalho que trazia outras canções controversas como “Arrombou a Festa II”, parceria de Rita com Paulo Coelho, em que ambos criticavam o cenário da música popular brasileira, e “Papai me Empresta o Carro”, um refrão-apelo de um jovem querendo levar sua garota ao cinema e “curtir” um sarro por aí.

Em sua autobiografia, Rita considera que “Papai me Empresta o Carro” é uma caricatura-homenagem daquela inocente problemática jovem das décadas de 1950 e 1960, sem “tutu” para o motel e ainda mais sem o hábito ou a prática de frequentar bordel.

Contudo, pelas histórias que ouço, a juventude das classes média e alta de Vitória da Conquista dos anos 1970/1980 se valeu e muito da química do refrão “Papai me Empresta o Carro”. Era pedir e pedir com instância, às vezes apelando para a birra ou para algum gesto intimidativo. Na música, por exemplo, a letra de Rita Lee e Roberto de Carvalho até amedronta: “Na minha idade você pintava o sete/ Mamãe tem ódio de uma tal Elizete”!

E em Conquista, tendo sucesso no empréstimo, o destino, na maioria das vezes, seria o eirado ou mirante onde hoje se vê hoje o Cristo de Mário Cravo Júnior e onde os jovens se reuniam para apreciar a vista panorâmica, namorar, e, é claro, se ajuntavam para “dar um tapa” e para outras mumunhas mais (se é que você me entende).

Segundo me contou meu amigo Ailton Freitas — com as gírias da época —, em um tempo em que não havia emissoras de rádio FM na nossa cidade, o “barato total” era reunir a “patota”, “dar na tábua”, subir a Serra do Peri-Peri e por ali esticar as antenas dos rádios dos carros para tentar sintonizar alguma emissora de Salvador para acompanhar as novidades, ao lado de algum “brotinho papo firme”.

Era “chuchu beleza”.

Quem sabe os mais estudiosos ou os mais cultos, talvez, também chamados de playboys ou de burgueses, poderiam “detonar” com algum comentário “maneiro” sobre algum livro. Afinal, boa parte da aristocracia conquistense daquele tempo enviava seus filhos para estudar no Colégio Taylor-Egídio, em Jaguaquara, o primeiro colégio batista brasileiro, e que era dirigido pelo casal Carlos e Stela Câmara Dubois, os quais impunham a leitura de 3 livros mensais.

E quem não lesse sofria o que chamaríamos hoje de bullying! Curioso é que o censor do Taylor-Egídio à época era o temido professor de inglês Jalon Leal, encarregado da revisão e da censura na escola, e, vê se pode, Jalon era fã incondicional de Bob Dylan! Agora, imagine um censor dos tempos de chumbo entoando os versos de “Blowin’ In The Wind”, “Like a Rolling Stone”, “Mr. Tambourine Man” ou “The times they are a-changin”?

De férias em Conquista, aquela moçada andava nos carros emprestados dos pais e, cá em baixo, longe da Serra, a única alternativa era acompanhar a programação da Rádio Regional ou da Rádio Clube, assim costumavam diminuir o som do carro quando, de repente, surgisse entre uma música e outra a vinheta: “Rádio Clube de Conquista, a pioneira da cidade”. Se deixasse rolar isto era como “pisar no tomate”.

É que até aquele momento ainda não se tinha popularizado por aqui o Compact Cassette, criado pela Philips, em 1963, a famosa fita K-7 que se tornaria o padrão para som automotivo nos anos 70 e 80, por ser mais confiável e porque permitia gravações caseiras com qualidade equivalente à da matriz, mas, sobretudo, porque permitia ao usuário fazer sua própria seleção de músicas.

Antes disto, o jeito era subir a Serra do Peri-Peri e, com sorte, sintonizar alguma FM da Capital. Ali, poderia também tirar uma onda de “bicho grilo” quem gostasse de ficar mais pertinho da natureza, mas sem ficar “grilado”, isto é, com raiva ou desconfiado de alguma coisa. Tudo “numa nice”, de boa e relaxado, e aquando algum amigo “Bidu”, o mais ousado, trouxesse uma “Maria Joana”, “Marijuana” ou “Mary Jane”, a tiracolo. Era de “rachar o bico” e era “de lei”. Era o point, o locus onde ninguém entraria “pelo cano” com “os canas” ou com “os gambé”.

Entretanto, os mais antenados ou descolados, porém, gostavam mais de ouvir a Rádio Mundial AM, 860 kHz, do Rio de Janeiro, a qual investia na black music, no rock e nos balanços para o público jovem. Nos anos 70, se tornaram famosas as coletâneas lançadas pela emissora carioca, a exemplo de “Sua paz Mundial – Sonzão Jovem”; “Super parada Mundial” e “Toca toca Mundial”. Ali figuravam, principalmente, artistas internacionais como Abba, B. J. Thomas, Carpenters, Dennis Yost, Paul Bryan, Timmy Thomas e Trini Lopez, por exemplo.

Sem falar em Elton John com seu famoso single “Skyline Pigeon”, que embalou muitos namoros (e casamentos) no Brasil dos anos 1970, popularizado sobretudo pela telenovela “Carinhoso”, da TV Globo — exibida entre julho de 1973 e janeiro de 1974, momento em que os primeiros televisores começavam a chegar em Conquista. E mesmo quem jamais soube uma palavra sequer em inglês cantou a plenos pulmões: “flááái-auêy-iscailáini-pidjiôn-flái” (fly away, skyline pigeon, fly)…

Todavia, como já observaram alguns historiadores da comunicação, nos anos 1980, há a interiorização e o consequente aumento da audiência das emissoras de rádio FM; com isto a rádio AM vai decaindo aos poucos e, além de tudo isto, aquela moçada do mirante conquistense vai passar a ter duas novas companhias: o Cristo de Mário Cravo Júnior e a rádio Clube FM 95,9 (hoje 96 FM) — ambos inaugurados em 1980.

Conquista estava entrando na contemporaneidade.

Cumpre lembrar que, com suas feições de sertanejo, o Cristo Crucificado do artista Mário Cravo Júnior é feito de fibra de vidro, tem 33 metros de altura e foi inagurado no dia aniversário da cidade, portanto em 9 de novembro em 1980. Pode-se dizer que, depois de experiências de concretos e neoconcretos no campo das artes no Brasil, tal como Lygia Clark e Hélio Oiticica, Mário Cravo Júnior é uma das grandes potências das transformações que a nossa arte experimenta na passagem da modernidade para a contemporaneidade.

O importante daquela obra não é tanto as explorações no campo da escultura, mas o elenco de questões que a orienta, mais o esforço reflexivo bem original. Já Leonardo da Vinci dizia que a arte é coisa mental, o mesmo que dizer que a arte sempre esteve ligada a alguma reflexividade; logo os traços nordestinos do Cristo Crucificado são marcados por uma exigência reflexiva e generosa, até; afinal não é uma arte que se entrega ou que se esgota em uma cômoda ou embevecida contemplação, antes solicita gentilmente de quem observa que acompanhe o problema formulado.

Há ali na obra de Mário Cravo Júnior, portanto, o deslocamento da fruição puramente óptica da obra de arte para o caráter reflexivo, aquilo que um crítico de arte já chamou de um traço estrábico da arte, em que um olho está na peça exposta e outro no problema que se formula. Interessante notar que boa parte da produção das artes visuais dos anos 70-80 nos serve de entrada para perceber muitas das questões atuais.

E quanto à Rádio Clube FM? Bem, a emissora é a primeira FM de Conquista e foi inaugurada dois meses antes do Cristo de Mário Cravo, em 6 de setembro daquele ano, embora o historiador Luís Fernandes, da Taberna da História, assinale a 6 de novembro. A rádio era parte do chamado grupo Rede Clube de Rádio (RCC), de propriedade da família do senhor Aurelino Novais, o precursor do rádio em Conquista. E, como destacou o saudoso Luís Fernandes, a Rádio Clube FM revelou grandes nomes do rádio da Bahia, os quais também fizeram sucesso em emissoras de Salvador, como Léo Fera (com passagem pela Bandeirantes FM, em 1985).

Em um dos artigos que escreveu (e que talvez fosse o princípio de um trabalho de maior fôlego que pretendia lançar e que, lamentavelmente, a sua morte prematura impediu), Luís Fernandes destaca os nomes de jovens talentos que a Rádio Clube FM revelou. Ele cita os nomes de Maciel Jr., Jânio Freitas, Deusdete Dias, Patrícia Oliveira, Cebolinha Quadros, Cacau Guimarães, Cássio Nunes, Jota Oliveira, Regina Oliveira, Nildo Freitas, Nilton Jr., Miguel Côrtes e Edmilson Landi.

Cabe pontuar que os três primeiros da lista de Luís Fernandes: Maciel, Jânio e Deusdete formaram um trio impagável no final dos anos 80 e início dos anos 90 — principalmente durante as micaretas, quando eles tinham uma proposta de o “trio que em toca em todos os trios” e suas “Mil Caretas de Paz”, em que eles pregavam a não-violência durante a festa.

Contudo, faltou a Luís citar os nomes de Américo, Wil Teixeira, Clóvis Júnior, Rubens Amaral, Jordan Gomes, Adriana Quadros, Rogério Arquieres, Djalma Mirante, Luiz Alves, Naldão Animal, Marcelo Guerra, Martha Costa, Caíque Santos, Sodake Albuquerque (atualmente, ele usa o nome Fernando Sodake e é apresentador do BATV estadual e editor da TV Bahia/Globo), entre outros nomes como Ivo Morgant que, segundo disseram, virou um carro da então diretora da rádio, Maria Emília Caminha de Castro. Felizmente, só danos materiais — como se diz no jargão dos plantões policiais!

À época da inauguração, a Clube FM retransmitia a programação da Rede Transamérica, gravada em fitas de rolo. E, segundo me disse Maciel Jr., o pessoal soltava o “tape-deck” e ia jogar bola no pátio da rádio! Mas, finalmente, cabe lembrar ainda que um dos primeiros locutores da Rádio Clube FM de Conquista foi o também saudoso Robério Flores, o Roberão do Carrascão. Mas esta é outra história… que eu vou comentar mais pra diante.

 

— Agradecimentos a atual direção e colaboradores da Rádio Clube FM. Agradeço ainda a Ernesto Marques, Joana Rocha, Cíntia Garcia, Aline Luz, Luiz “Lula” Alves, Edson Maciel Jr. e Vanilson Marques, o Tiço. E o Ailton Freitas é, praticamente, coautor deste texto.

— Em memória de Luís Fernandes, historiador e jornalista com passagens por veículos como Tribuna da Bahia, Jornal Impacto e Jornal Hoje, além de funcionário da Justiça do Trabalho em Vitória da Conquista. Faleceu em 3 de abril de 2015. Êh, Luís, a morte chega cedo; é breve toda vida…. E umas mais que outras, infelizmente.

— Toda gratidão ao fotógrafo Alberto Maraux, da Secretaria de Segurança Pública do Governo do Estado, que cedeu muito gentilmente a fotografia que ilustra essa coluna.

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